Num mundo em que a infância disputa espaço com as telas e o imediatismo, proteger o direito de ser criança tornou-se um ato de amor e de justiça. A infância é o tempo de aprender a ser, sem pressa, sem máscaras, sem filtros, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconhece esse direito como um dos pilares de uma vida plena, baseada na liberdade, no respeito e na integridade, mas, em meio a telas, algoritmos e buscas por engajamento, o fenômeno silencioso da adultização infantil tem roubado o protagonismo dessa fase.
Meninas e meninos passaram a reproduzir comportamentos, discursos e aparências típicos do universo adulto, seja pela moda, pela linguagem, pela exposição nas redes ou pela lógica da performance.
Para muitos, pode parecer uma tendência; para o olhar da Justiça, é um alerta social e jurídico. Afinal, toda vez que uma criança é conduzida a um papel que não lhe cabe, um direito é violado.
Às vésperas do Dia das Crianças (12/10), o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) lança um olhar atento sobre o tema por meio de entrevistas com o juiz Adriano Gomes, titular do Juizado Especial da Infância e Juventude de Palmas, e a psicóloga Arlene Antunes, do Núcleo de Acolhimento e Acompanhamento Psicossocial (NAPsi). A conversa aborda os impactos da adultização infantil e o papel da Justiça na preservação do tempo da infância.
Infância em risco
A adultização é a antecipação de papéis, comportamentos e responsabilidades que não condizem com a idade nem com a maturidade emocional de uma criança.
Nos últimos anos, com o avanço das redes sociais, essa exposição se intensificou, impulsionada por algoritmos que premiam a visibilidade, mas ignoram a vulnerabilidade.
A nova Lei nº 15.211/2025, conhecida como ECA Digital, surgiu como resposta a esse cenário, obrigando plataformas a criarem mecanismos de proteção e alinhando o Brasil às legislações internacionais de defesa da infância no ambiente virtual.
Para o juiz Adriano Gomes, o aumento dessa exposição reflete transformações sociais e culturais que exigem regulação e vigilância. “Há uma evolução da sociedade no sentido de alteração dos costumes. O diálogo da comunidade passou a se dar muito mais através das redes sociais. Naturalmente, os mais jovens começam a participar”, comenta.
Essa participação, contudo, nem sempre ocorre de forma segura. Antes sem regulamentação, o ambiente digital tornou-se fértil para a exposição precoce. “Com a nova lei, passamos a ter mecanismos para regular essa situação da exposição das crianças. Era previsível que elas ingressassem nesse espaço, mas essa previsibilidade não significa naturalidade. E justamente por haver equívocos, surgiu a necessidade de controle”, explica o magistrado.
Quando o entretenimento dá lugar à exposição
O juiz chama atenção para a diferença entre uma simples postagem e a exploração disfarçada de conteúdo infantil. “A ciência recomenda a partir de que idade a criança deve usar aparelhos celulares, ter acesso a redes sociais e qual o limite de tempo. É preciso observar caso a caso para saber quando uma publicação deixa de ser apenas uma lembrança e passa a ter objetivo econômico.”
Segundo ele, a Lei 15.211/2025 ajuda a identificar situações em que há vantagem financeira ou busca de engajamento em detrimento do bem-estar infantil. “Essa exploração pode ocorrer por meio de empresas, mas também dentro da própria família. Pais acabam explorando a imagem da criança, seja para obter lucro, likes ou seguidores. Tudo isso pode caracterizar, ainda que de forma sutil, uma forma de exploração.”
A importância do alvará
Quando há interesse em que crianças participem de produções artísticas, campanhas publicitárias ou conteúdos digitais, é necessária autorização judicial. “Primeiro, é preciso ver se aquele trabalho segue os critérios da moralidade e os parâmetros previstos no ECA e na Lei 15.211. A documentação deve ser apresentada para que se analise se a imagem da criança será preservada, principalmente quando há objetivo econômico”, pontua o magistrado.
Segundo Gomes, o alvará já é disciplinado há décadas, mesmo antes da internet. “É feito um requerimento ao juiz, ouvido o Ministério Público, e analisada toda a documentação para garantir que a carga horária não interfira na educação, nas atividades de lazer e que não haja exploração da criança.”
A autorização também considera o conteúdo e o ambiente da produção. “É analisado se a carga horária preserva o direito de estudar, fazer as tarefas e brincar. Tem que ser algo pequeno. O conteúdo e o ambiente podem influenciar, e isso também é avaliado.”
Nos casos com indícios de exploração, o juiz reforça que o Judiciário atua junto às forças de segurança e ao Ministério Público. “Havendo notícia, a delegacia especializada ou a geral, conforme o porte da cidade, deve investigar e comunicar o fato ao Ministério Público. Com elementos suficientes, o promotor propõe ação para responsabilizar redes sociais, pais ou demais envolvidos e adotar medidas de proteção à criança.”
O papel das famílias e a prioridade da infância
A proteção, enfatiza o juiz, é um dever coletivo. “A Constituição estabelece a prioridade absoluta e a proteção integral às crianças. É dever do Estado, da sociedade, da família, de todos nós.”
Ele recomenda que pais e responsáveis busquem orientação antes de permitir qualquer exposição online. “Devem procurar informações junto às autoridades competentes, na área judiciária, psicológica ou da saúde, para avaliar se aquela exposição é adequada. Devem controlar o celular, observar o conteúdo e, na dúvida, procurar ajuda.”
Segundo Gomes, a preservação da infância é um valor antigo, mas sempre atual.
“Já houve momentos em que as crianças foram exploradas, como na Revolução Industrial. Hoje, com a internet, vivemos um novo desafio. É um inimigo invisível. Às vezes é difícil dizer ‘não’, já que todo mundo usa. Mas saibam: seu filho não é todo mundo. Ele precisa de limites e vigilância.”
Impactos da exposição precoce e a importância de preservar a infância na era digital
A psicóloga Arlene Antunes, do NAPsi, lembra o conceito descrito pela juíza Paula Afoncina Barros Ramalho (TJDFT), que trata a adultização infantil como a “exposição de crianças e adolescentes a responsabilidades, comportamentos, conteúdos e hábitos inapropriados para a idade.”
Segundo Arlene, não é um fenômeno novo, contudo o acesso às redes sociais por crianças potencializou este fenômeno de forma exponencial tornando-a um dos fenômenos mais preocupantes da sociedade contemporânea.
Para ela, a era digital trouxe novas manifestações desse processo, como a chamada adultização digital, que inclui a superexposição da imagem infantil, a monetização de conteúdo produzido por crianças e a pressão por desempenho e validação nas redes. “O brincar passou a ser filmado, avaliado e monetizado. A espontaneidade foi substituída pela performance”, observa.
Conforme a psicóloga, as consequências da adultização precoce podem ser devastadoras para o desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças. “Algumas pesquisas científicas recentes revelam que a constante exposição às redes sociais ativa o circuito de recompensa do cérebro, provocando uma enxurrada de dopamina, neurotransmissor ligado ao bem-estar. Em crianças e adolescentes, cujo sistema nervoso ainda está em desenvolvimento, esta estimulação excessiva pode comprometer o amadurecimento neurológico natural.”
A psicóloga destaca que os sinais de alerta podem ser sutis, mas perceptíveis. “É importante que pais e/ou responsáveis fiquem alertas a sinais como desinteresse por brincar, irritabilidade constante, isolamento, dificuldade de concentração, alterações no sono, dificuldades de aprendizagem, ansiedade excessiva, e preocupação desproporcional com aparência”, pontua ela, que reforça que é preciso ficar alerta com repertório inadequado para a idade sobre temas adultos, como sexualização precoce, uso indevido de maquiagem, moda adulta, desejo de ser influenciador. “As fontes destes interesses devem ser investigadas”, ressalta.
Infância como espaço de proteção e descoberta
Para a especialista, a atividade lúdica é o coração da infância, e quando ela é transformada em exibição, perde seu valor de descoberta e prazer. “O brincar espontâneo é descomprometido de likes, monetização e exposição a conteúdos indevidos, seja como autora ou consumidora de conteúdo.”
Arlene alerta também para o chamado sharenting (compartilhamento de conteúdo sobre filhos), que pode evoluir para exploração comercial da vulnerabilidade infantil.
A prevenção começa dentro de casa. Segundo Arlene, os pais e responsáveis devem reconhecer a gravidade do problema e adotar práticas simples, mas consistentes como: estabelecer limites digitais, promover o diálogo aberto, valorizar o brincar e oferecer uma educação sexual adequada à idade.
Ela reforça que as escolas também desempenham papel essencial ao identificar sinais precoces de adultização. “Programas de educação digital e cidadania online, capacitação de educadores para identificação de sinais de alerta, implementação de protocolos de proteção, e parcerias com famílias para ações preventivas”, explica.
A psicóloga destaca ainda que a sociedade precisa cobrar maior responsabilização das plataformas digitais e fortalecer os canais de denúncia, como o Disque 100 e os Conselhos Tutelares.
Parceria pela infância
Arlene ressalta a importância do olhar integrado entre o sistema de Justiça e a Psicologia na defesa dos direitos da criança. “Há uma urgência em compreender os mecanismos psicológicos, sociais e jurídicos envolvidos na adultização, bem como suas implicações para a formação da personalidade e o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Além disso, é fundamental analisar os impactos negativos para aqueles que consomem esse tipo de conteúdo nas redes sociais, criando um ciclo vicioso de normalização da exploração infantil.”
Segundo a psicóloga, o ordenamento jurídico brasileiro possui instrumentos robustos para proteção da infância e adolescência, mas ainda precisa se adaptar às novas dinâmicas digitais.
Ela cita o artigo 227 da Constituição Federal, que estabelece a prioridade absoluta da infância e da adolescência, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante proteção integral. Mas diz que o desafio é fazer com que as garantias acompanhem a velocidade das redes.
“A adultização das crianças rouba seu direito fundamental à infância. Cabe a todos, pais, escola, sociedade, contribuir para garantir que este direito seja respeitado, protegido e promovido, para que cada criança possa crescer em ambiente seguro, amoroso e adequado ao seu desenvolvimento integral”, enfatiza Arlene.
A psicóloga reforça que, em casa, deve-se conversar com as crianças e adolescentes mantendo diálogo aberto sobre a proteção corporal e comportamentos adequados à idade.
“Devem-se estabelecer limites claros do uso de telas, supervisionar os conteúdos consumidos, verificar classificação indicativa, assistir junto, conversar sobre o conteúdo. Imprescindível valorizar o brincar livre, buscar atividades que estimulem a criatividade e o desenvolvimento, brincar junto criando conexões e memórias afetivas desta etapa ímpar e de fundamental importância para o desenvolvimento de pessoas saudáveis e equilibradas.”
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