Como garantir cuidado em vez de controle? Justiça em vez de exclusão? O diálogo entre saúde mental, justiça e socioeducação ganhou espaço no auditório do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins na manhã desta quarta-feira (22/10), com a abertura do evento Interfaces entre Sistema de Justiça, Saúde Mental e Socioeducação. A programação reuniu autoridades e especialistas para discutir caminhos de proteção e cuidado – e propor respostas possíveis a essas perguntas.
Ao dar início oficial à programação, o juiz auxiliar da Presidência do TJTO, Esmar Custódio Vêncio Filho, enfatizou que o enfrentamento das violações no sistema socioeducativo exige articulação entre os poderes Executivo e Judiciário, nas esferas estadual e municipal. Em sua fala, o magistrado também compartilhou impressões de suas pesquisas acadêmicas, chamando a atenção para a ausência de dados sistematizados sobre transtornos mentais entre adolescentes em cumprimento de medida.
“E quando falamos do sistema socioeducativo, nós temos de envolver logicamente não só os(as) operadores(as) do Direito mas especialmente o poder Executivo, estadual e municipal”, observou.
A articulação intersetorial foi reforçada ao longo de toda a cerimônia. A secretária de Saúde do Município de Araguaína, Dênia Rodrigues Chagas, defendeu a importância da parceria entre saúde, educação e justiça. Também representando os municípios, o secretário executivo de Saúde de Gurupi, Ricardo da Silva de Jesus, avaliou que a realização do evento contribuirá com novas estratégias diante dos desafios atuais.
Representando a Universidade Federal do Tocantins (UFT), Marta Azevedo dos Santos trouxe à tona a centralidade da dignidade humana nas políticas públicas. “Refletir sobre as interfaces entre o Sistema de Justiça, a saúde mental e a socioeducação é afirmar que a dignidade humana é o ponto de encontro entre o cuidado e a justiça”, disse. Ao abordar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), completou:
“O cuidado não pode estar fragmentado, ele deve estar articulado entre saúde, educação, justiça e assistência social (…). Que este evento seja lembrado como um marco de convergência entre saber, cuidado e justiça, e que daqui surjam novas parcerias para transformar indicadores, políticas e realidades mais saudáveis.”
A conexão entre o evento e as pautas históricas da sociedade civil foi trazida por Mônica Pereira Brito, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Tocantins:
“Esse é um tema estratégico, é uma pauta histórica dos movimentos sociais, alinhar a socioeducação com a justiça e com a saúde mental.” Ao fazer referência ao livro Mundo em Disputa, de Márcia Tiburi, Mônica propôs reflexões críticas sobre o papel da socioeducação.
“É paradigmático dizer que a socioeducação é um direito e que nós lutamos aqui pela socioeducação, não pela punição (…) isso é uma disputa de ideias, lutar contra o patriarcado, o capacitismo, contra a teoria racial, o capitalismo”, afirmou.
Durante a cerimônia, também se manifestaram representantes das instituições parceiras: o secretário estadual da Educação, Hércules Jackson Moreira Santos, relatou ações voltadas a jovens acompanhados pela pasta; o secretário executivo da Assistência Social, Washington Luiz Vasconcelos, reiterou o compromisso do Governo do Estado com a atuação integrada; a secretária executiva da Saúde, Ana Paula dos Santos Andrade Abadia, reforçou que a participação do estado no grupo interinstitucional possibilitará consolidar fluxos de atendimento e garantir o cuidado integrado em saúde mental.
“Trata-se de uma pauta que exige sensibilidade, corresponsabilidade e, sobretudo, ação integrada entre o Sistema de Justiça e as políticas públicas”, enfatizou Ana.
A secretária estadual de Cidadania e Justiça, Estelamaris Postal, compartilhou experiências da gestão e valorizou o impacto das políticas de cuidado. “O tema que nos reúne vai muito além de um debate técnico ou jurídico, ele fala diretamente sobre vidas humanas, sobre histórias de adolescentes que (…) ainda carregam em si a potência da reconstrução e da esperança”, acrescentou.
O juiz Adriano Gomes de Melo Oliveira, coordenador da Infância e Juventude do TJTO, reforçou que a prioridade à infância deve se materializar na estrutura dos serviços.
“Essa prioridade tem de ser aplicável a todos e a todas. O TJTO fez com que o Juizado da Infância e Juventude de Palmas seja hoje a unidade judiciária com melhor estrutura, em termos de assessoria, de equipe multidisciplinar”, afirmou.
Representando o Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF) do TJTO, o juiz José Eustáquio de Melo Júnior, coordenador da área, comentou que o evento busca refletir sobre práticas de cuidado e direitos humanos no sistema socioeducativo. “A programação pensada para este evento buscou incorporar conteúdos que tratam das mais variadas dimensões do cuidado, com destaque para as responsabilidades compartilhadas (…) e para a compreensão do Poder Judiciário como agente articulador de políticas públicas, indutor de boas práticas e garantidor de direitos”, avaliou.
Compromisso formalizado com a saúde mental no socioeducativo
Durante a solenidade, foi assinada simbolicamente a Portaria Conjunta nº 12 do Tribunal de Justiça do Tocantins, de 2025, e instituições parceiras, que institui o Grupo de Trabalho Interinstitucional para construção de estratégias e pactuação de ações voltadas ao cuidado em saúde mental de adolescentes atendidos(as) pelo sistema socioeducativo. A iniciativa está alinhada à Lei nº 10.216, de 2001, e à Resolução nº 487 do CNJ, de 2023, que estabelece a Política Antimanicomial do Poder Judiciário.
Conferência de abertura reforça papel do Judiciário na garantia de direitos
Encerrando a programação da manhã, a conferência de abertura foi ministrada, por videoconferência, pelo desembargador Ruy Muggiati, supervisor do GMF do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), com mediação do juiz José Eustáquio.
Ao abordar o tema “O Poder Judiciário e a Política Antimanicomial: garantindo direitos e a saúde mental no socioeducativo”, o desembargador – cuja trajetória no campo dos direitos humanos e da execução penal tem provocado reflexões sobre os limites do modelo punitivista ainda vigente – destacou:
“É uma honra estar aqui neste encontro, que nos convoca a discutir sobre a intersetorialidade e perspectivas estruturantes do modelo socioeducativo (…) lembramos que o acesso à saúde é fundamental para a vida”.
Para o magistrado, a execução da pena, quando reduzida a um cumprimento técnico da sentença, falha em reconhecer a complexidade humana do sujeito privado de liberdade e ignora a responsabilidade de o Estado garantir os direitos que não foram atingidos pela condenação. “Não há reintegração possível sem reconstrução”, frisou, ao enfatizar a importância da escuta qualificada, do reconhecimento das trajetórias e da oferta de oportunidades reais para a retomada da autonomia de adolescentes e jovens em conflito com a lei.
A programação do evento segue ao longo da tarde desta quarta-feira (22/10) e continua na quinta-feira (23/10), com mesas temáticas e debates voltados à qualificação das práticas no sistema socioeducativo.