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o documento que virou arte e emocionou o Poder Judiciário tocantinense


O Dia da Consciência Negra, celebrado neste 20 de novembro, ganha no Tocantins um sentido ainda mais profundo e documental. A data, que passou a ser feriado nacional somente com a sanção da Lei nº 14.759, em dezembro de 2023, foi marcada este ano no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO) pela lembrança vívida e comovente da história de Paula. Uma mulher negra, idosa e escravizada, que conquistou judicialmente sua liberdade três décadas antes da assinatura da Lei Áurea.

A reflexão sobre a data ganhou corpo, voz e emoção na noite dessa segunda-feira (17/11), quando o auditório do TJTO foi palco de um resgate histórico com a apresentação do espetáculo “Vozes Silenciadas: A Luta de Paula por Liberdade”.

Parte integrante da programação da II Semana de Diálogos Sobre Igualdade e Diversidade, a peça não é apenas uma obra de ficção, mas o resultado de um minucioso trabalho de arqueologia e memória institucional realizado pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat) e pela Comissão de Gestão da Memória do TJTO, representando, mais do que uma atividade artística, um ato institucional de compromisso com reparação, visibilidade e escuta.

A História por trás dos Autos

Interpretada pela atriz e bailarina Meire Maria Monteiro e pelo Grupo Vozes de Ébano, a montagem reconstrói um processo judicial de 1858 que tramitou na antiga Comarca de São João da Palma, atual município de Paranã.

O documento original, guardado há mais de 160 anos e que à primeira vista parecia apenas uma petição do século passado, agora sob a custódia da Esmat, revelou o registro da bravura de uma mulher, Paula, que mesmo em condições de fragilidade e sob as amarras de um sistema opressor lutou juridicamente não só pela sua liberdade, mas também por sua humanidade em uma sociedade que a via como propriedade.

Avaliada como “herança” no valor de 60 mil réis, Paula contrariou as estatísticas de um Brasil Império escravocrata, insistiu no direito de ser livre, conseguiu e hoje se tornou um símbolo da resistência feminina e negra no Tocantins.

Memória como Responsabilidade Pública

A desembargadora Angela Issa Haonat, diretora adjunta da Esmat e idealizadora do espetáculo, destacou a potência transformadora dessa narrativa. Para a magistrada, a encenação transcende o aspecto cultural, posicionando-se como uma ferramenta pedagógica necessária para o Judiciário contemporâneo.

“Esta peça não é um complemento artístico da Semana. Ela é, em si, uma intervenção institucional. É um modo de convocar o Poder Judiciário a olhar para sua própria história e reconhecer que a memória jurídica também é um campo de responsabilidade pública”, afirmou a desembargadora. 

A idealização do espetáculo demonstra um movimento do Judiciário Tocantinense de olhar para o seu próprio acervo não como arquivos mortos, mas como testemunhos de vidas. O resgate dessa trajetória é fruto de longa dedicação.

O servidor e jornalista Wherbert Araújo, um dos coordenadores e responsáveis pela pesquisa da montagem, explicou a gênese do projeto: 

“É um trabalho que se debruça há mais de três anos sobre esse documento. A culminação deste trabalho é este espetáculo promovido pela Esmat, com apoio do desembargador Marco Villas Boas e com a Comissão de gestão da memória”.

A Arte do Resgate

No palco, a aridez do documento processual foi traduzida em emoção palpável. A atriz Meire Maria Monteiro, que deu corpo e alma à Paula, ressaltou a importância da iniciativa da Esmat em lançar luz sobre arquivos que poderiam permanecer esquecidos. Em sua fala, Meire destacou a potência do gesto institucional de transformar esse registro em memória viva:

“A história de Paula poderia ficar simplesmente em um registro documental guardado fora do olhar de qualquer cidadão(ã), mas a partir do momento em que o Tribunal de Justiça, por meio de sua Escola, a Esmat, pega essa história, pega esse registro e transforma em arte, foi uma ação e é um projeto sensacional, é um projeto único que realmente merece todos os aplausos porque prestaram um serviço público não só simplesmente pelo seu dever de memória ou o seu dever de registro, mas também transformaram a história de uma ancestral em arte e, pelo melhor, trouxeram essa história à luz, iluminaram a história do estado do Tocantins”, disse Meire.

Com profunda sensibilidade, a atriz ressaltou a relevância do trabalho coletivo que possibilitou a montagem e execução do espetáculo. “Trazendo-nos a verdade, trazendo-nos esse registro por meio da cultura e de toda uma equipe de artistas, de profissionais, aos quais eu sou profundamente grata. Interpretar a Paula, para mim, foi um presente, foi uma honra”, falou.

Por fim, emocionada, Meire também compartilhou sua percepção sobre o impacto causado no público, um dos momentos mais marcantes da noite:

“Mas o que mais eu acho que ficou bacana em tudo isso foi a reação da plateia. O público, com certeza, após a apresentação do espetáculo, levou Paula para casa, contou para os(as) seus(suas) amigos(as). Contou para os seus familiares, relatou a emoção de ouvir a história dessa mulher. E o melhor, uma história que poderia ser muito dolorosa foi transformada em luz, pela arte-cultura. Realmente, um projeto e uma ação histórica maravilhosos que marcam o início da possibilidade de se fazer isso com outros registros, com outros heróis, com outras vozes que precisam ser escutadas”.

Ancestralidade

Para as integrantes do Grupo Vozes de Ébano, que conduziram parte da narrativa do espetáculo, participar da produção foi um encontro com a própria ancestralidade e uma oportunidade de ecoar lutas que, embora seculares, permanecem atuais. O Grupo emocionou o público com canções como “A Carne”, “Zumbi” e “O Canto das Três Raças”.

Para a cantora Fran Santos, a apresentação foi mais do que uma performance, foi um reencontro com a própria ancestralidade, com a força feminina e com o sentido mais profundo da coletividade: “Enquanto eu estava ali no palco, pensava na coragem dessa mulher, no quanto ela abriu caminhos, o quanto ela resistiu, e como a história dela ecoa até hoje. Eu acho que para nós, dar voz por meio da nossa música foi emocionante. E estar ao lado das minhas companheiras, Cintia, Maluza e Meire, sentindo a energia do público e vendo como este também recebeu essa história foi muito bonito. Eu saí de lá, assim, leve e grata ao mesmo tempo, por ter vivido este momento tão especial”.

Essa mesma emoção também reverberou na fala da cantora Cinthia Abreu, que reforçou o poder da arte como instrumento de transformação social e conexão entre mundos que, muitas vezes, se ignoram. Para ela, a experiência foi intensa, profunda e inesquecível, especialmente pelo impacto gerado na plateia.

“Foi uma honra muito grande participar desse espetáculo. Acho que a emoção que a gente sentiu ao ver o auditório lotado até agora ainda está muito latente em mim, em todo o nosso grupo. Foi uma participação muito emocionante. Posso considerar que foi uma das nossas melhores apresentações no sentido de recepção do público, de repercussão”, partilhou.

Já Malusa Lopes, também cantora e integrante do grupo, trouxe à tona o desejo de continuidade: que esse tipo de ação não seja pontual ou comemorativa, mas que se transforme em política cultural permanente.

“Foi de uma extrema importância histórica, pessoal, como mulher negra também, e que luto diariamente. Sobre a minha história, sobre a minha sensibilidade, e fazer isso cantando e interpretando também foi lindo, foi emocionante, foi importante. Eu espero que não fique só numa data. Mas que venha em outros momentos, porque como mulher negra e artista, cantora, seria de uma extrema importância levar isso para outras pessoas conhecerem a história de Paula”, pontuou.

Diálogos de Diversidade e Igualdade

A apresentação serviu como ponto alto da II Semana de Diálogos sobre Igualdade e Diversidade. Para a juíza Renata do Nascimento e Silva, coordenadora do evento, a iniciativa vai ao cerne da proposta institucional de inverter a lógica do esquecimento.

“Um espetáculo como este faz o contrário do que, por muito tempo, foi feito com vozes marginalizadas e tratadas como inexistentes. Aqui, nós falamos. Aqui, nós somos ouvidos(as). Aqui, ocupamos o centro do debate”, pontuou a magistrada.

Depoimentos

A repercussão positiva foi imediata entre o público presente. O secretário extraordinário de Igualdade Racial e Direitos Humanos, José Eduardo de Azevedo, sintetizou o sentimento de ver uma instituição de poder abrir suas portas para essa narrativa.

“Então, foi um evento muito lindo que teve um resgate da nossa ancestralidade, né, não só nos discursos, mas também na apresentação cultural que nós tivemos foi um momento muito importante onde um espaço tão importante, tão necessário como um dos poderes do estado do Tocantins se abriu para que a gente pudesse resgatar a nossa ancestralidade. Isso num mês da igualdade racial é muito importante e significativo”, compartilhou.

Bruna Patrícia Ferreira, chefe de gabinete da Corregedoria, também compartilhou sua emoção: “O espetáculo foi maravilhoso e muito emocionante! Músicas, atuações e cenários espetaculares. Somos todas, Paula! Um verdadeiro marco para a história do Tribunal. O Tribunal de Justiça, Corregedoria e Esmat estão de parabéns pelo evento de tamanha grandiosidade e relevância”.

Ao final, “Vozes Silenciadas” cumpriu seu papel, retirou Paula das páginas amareladas de um processo antigo e a colocou no centro da memória tocantinense, provando que a justiça também se faz ao não deixar o passado ser esquecido.

Mais informações

Confira o documento original neste link. A transcrição está disponível para leitura aqui.



FONTE

Tribuna do Tocantins

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