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Quando a inclusão será prática e não apenas discurso?


A história de um evento, como a de uma imagem, também é feita de recortes. Cada fala, cada gesto, cada pausa é uma escolha que revela olhares sobre o mundo. Durante o encontro Judiciário Inclusivo: construindo uma Justiça sem barreiras, realizado na quinta-feira (15/5), no auditório do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO), todas as falas pareceram essenciais. Ainda assim, este texto é apenas um fragmento do que, de fato, foi compartilhado.

O que se segue é uma tentativa de registrar um dia inteiro dedicado à escuta, à reflexão e ao compromisso coletivo com um sistema de Justiça mais acessível, plural e sensível às diferenças.

Desenvolvido pela Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI), em parceria com a Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), o evento contou, além da palestra de abertura ministrada pelo juiz aposentado e membro da CPAI, Adhemar Chúfalo Filho, cadeirante, com outras cinco exposições.

Capacitismo institucional: reconhecer para transformar

A segunda palestra do dia foi conduzida pelo advogado Joelson Dias, representante do Conselho Federal da OAB no Conade (Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência), com mediação do corregedor-geral de justiça, desembargador Pedro Nelson de Miranda Coutinho.

Com o tema “Capacitismo institucional: reconhecer para transformar”, Joelson, que é um homem com deficiência visual, iniciou sua fala destacando a preocupação do evento em garantir acessibilidade plena aos participantes, com intérpretes de Libras, linguagem simples e diversidade nas mesas. Antes de entrar na abordagem técnica, o palestrante provocou: “Será que vou mesmo falar sobre capacitismo institucional?”, disse, para em seguida confirmar que sim, não limitado a um tribunal específico, mas a todo o sistema de Justiça.

“Reconhecer o capacitismo institucional no Poder Judiciário não é um ato de crítica, mas o primeiro passo de um ato coletivo de reconstrução: transformar o sistema de Justiça de espectador em protagonista da revolução inclusiva que a nossa Constituição exige. […] A justiça que não pode ser alcançada por todos e todas simplesmente não é uma justiça”, argumentou.

O advogado chamou atenção para o fato de que o capacitismo institucional opera de forma silenciosa e estrutural. “Pensar no capacitismo institucional é pensar na discriminação estrutural. Nós só podemos falar de capacitismo da mesma forma que falamos de sexismo, racismo, homofobia e etarismo, porque existe um preconceito estrutural que leva a todos esses”, pontuou, acrescentando: “O que na verdade é vulnerável são os direitos, e não as pessoas.”

A superação dessas barreiras, segundo ele, é um dever da sociedade e das instituições. “Quem tem que se superar não é a pessoa. Não é o indivíduo. Quem tem que se superar é a sociedade, são os nossos poderes, na eliminação dessas barreiras e desses obstáculos”, expressou. 

“O reconhecimento do problema, do desafio — exatamente como este Tribunal propôs fazer — é o primeiro passo para essa transformação necessária em direção a um sistema judicial verdadeiramente acessível, equitativo e comprometido com a dignidade humana em toda a sua diversidade. Todos os corpos importam”, concluiu, reforçando que a mudança precisa ir além das normas, é preciso implementar práticas reais de inclusão.

Comunicação acessível no Judiciário: um direito de todos

A terceira palestra, ainda na parte da manhã, foi conduzida por Priscilla Selares, advogada e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Luís (MA). A mediação ficou a cargo do advogado Marques Elex, com atuação na comarca de Araguaína (TO). A debatedora foi Mônica Ferreira da Costa, presidente do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência de Palmas (TO).

Logo no início, Marques, que é um homem com deficiência visual, destacou o valor do evento por acontecer fora de datas comemorativas e elogiou a organização. “O evento é um gol de placa do nosso TJTO”, afirmou, após ler o currículo da palestrante em braille.

Em sua fala, Priscilla abordou o papel fundamental da comunicação acessível no sistema de Justiça.

“Justiça só é verdadeiramente justa se todos conseguem compreendê-la e acessá-la. E não podemos falar em uma Justiça que seja verdadeiramente justa sem que todas as pessoas — e aí todas, no verdadeiro significado de toda a diversidade humana que a gente possui — consigam compreender e acessar esse Judiciário”, pontuou.

Ela explicou que comunicação acessível não se limita à compreensão de conteúdos, mas começa pelo acesso à informação. “É importante chamar atenção que a comunicação acessível é necessária para que todas as pessoas, independente da condição de deficiência, da escolaridade, da classe social, possam compreender a informação que está sendo transmitida”, reforçou.

Priscilla destacou que a sociedade é plural e, por isso, a comunicação efetiva exige formas igualmente diversas. Com dados do IBGE de 2022, a advogada apontou que 18,6 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência, mas apenas 2% das pessoas cegas leem braille fluentemente, o que só reforça a urgência de múltiplos formatos acessíveis.

Em depoimento, a debatedora Mônica destacou a mudança de mentalidade dentro do sistema de Justiça:

“Eu estou achando extremamente importante. Eu acho que é um grande passo que a gente está dando em relação à inclusão e acessibilidade. 2025 tem sido um ano muito diferente dentro do Tribunal de Justiça, eu pude escutar sobre o sistema Braille, sobre Libras, sobre acessibilidade, inclusão. […] Essa mudança de mentalidade está sendo muito importante. E esse evento vem ao encontro dessa mudança”, expôs.

Arte e inclusão: a voz de Duda Leite

O retorno das atividades no período da tarde foi marcado por um momento de escuta sensível e representativa. A jovem artista Maria Eduarda Leite Araújo, conhecida como Duda Leite, compartilhou com o público sua trajetória e o papel transformador da arte em sua vida.

Aos 22 anos, Duda é autora da exposição apresentada durante o evento. Apaixonada por pintura, ela começou a estudar história da arte em 2022 e tem se destacado por suas releituras de grandes mestres como Van Gogh, Kandinsky, Monet, Portinari e Ivan Cruz.

“A arte é fundamental para mim, pois me permite comunicar e entender o mundo de forma mais rica e profunda. Ela me ajuda a expressar meus sentimentos, explorar minha criatividade e conectar-me com outras pessoas e culturas. A arte também me ajuda a desenvolver habilidades importantes como a criatividade, a capacidade de resolver problemas e de analisar e receber informações”, compartilhou.

Ao final de sua fala, Duda deixou uma mensagem de encorajamento ao público: “Sejam quem vocês são. Não se importem com o que os outros pensam de vocês. Sejam fortes e acreditem nos seus sonhos. Estamos todos juntos: a inclusão constrói coletivamente.”

A pessoa surda e o Judiciário: sem Libras não há Justiça

A quarta palestra foi apresentada por Clarissa Gomes de Souza, servidora pública com deficiência auditiva do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Seção Judiciária da Paraíba (TRF5-SJPB). O tema de sua exposição foi “A pessoa surda e o Judiciário: sem a Libras não há Justiça”. A mediação foi conduzida por Patrícia Idehara, secretária executiva da CPAI.

Clarissa iniciou sua fala compartilhando sua vivência como uma surda oralizada, ou seja, ela nasceu ouvinte e perdeu a audição gradualmente. Essa trajetória lhe permitiu refletir sobre a diversidade interna à comunidade surda e a importância de o sistema de Justiça reconhecer as múltiplas formas de comunicação.

“É importante a gente se posicionar no mundo pra entender como contribuímos com esse debate. Pensar um Judiciário sem barreiras exige reconhecer que há diversidade até dentro da deficiência”, enfatizou.

A palestrante destacou que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) possui gramática própria e, embora tenha elogiado o acolhimento durante o evento, alertou que essa ainda não é a realidade na maioria das instituições públicas brasileiras. Defendeu, também, o respeito à identidade de cada indivíduo dentro da diversidade da deficiência auditiva.

“Vai ter pessoas surdas que não se comunicam em Libras, outras que se identificam como deficientes auditivos. E a gente precisa respeitar isso, porque trata da identidade daquele indivíduo”, afirmou.

Em uma analogia potente, Clarissa comparou a experiência de uma pessoa surda à de um estrangeiro: “Ser surdo é ser estrangeiro no seu próprio país”, disse. “A sociedade ainda não oferece espaços linguisticamente inclusivos.” Ela reforçou que a deficiência está no ambiente, e não no corpo, e que a maior barreira enfrentada por pessoas surdas é a indiferença linguística.

“Sem língua, não há voz. Sem voz, não há justiça”, completou.

Ao final, Patrícia Idehara ressaltou os serviços de acessibilidade oferecidos pelo TJTO a servidores(as) e magistrados(as), bem como os cursos promovidos pela Esmat, especialmente em Libras e em temáticas ligadas à inclusão. Frisou ainda a importância do uso da linguagem simples na acessibilidade, para que o tradutor em Libras consiga transmitir plenamente à pessoa surda o que está sendo comunicado.

Autismo e neurodivergência no sistema de Justiça: desafios em compreender para uma acessibilidade integral

A quinta palestra foi conduzida pela neuropsicóloga e reabilitadora cognitiva Jordanna Parreira, com mediação do juiz Gil Correia, do TJTO. O tema da palestra foi “Autismo e Neurodivergência no Sistema de Justiça: desafios em compreender para uma acessibilidade integral”.

Com uma abordagem técnica e sensível, Jordanna falou sobre a importância de reconhecer o funcionamento neurológico diverso como parte legítima da pluralidade humana. Segundo ela, compreender a neurodivergência é fundamental para construir um sistema de Justiça acessível de forma integral, e não apenas adaptada.

“Parar para estudar, parar para conhecer, para saber, ter informações efetivamente científicas sobre o transtorno e sobre todas as neurodivergências deve ser feito de forma continuada. E é aí que eu vejo os desafios que nós enfrentamos enquanto sociedade, enquanto Poder Judiciário, enquanto famílias. Porque se tudo é muito novo e tudo precisa ser estudado e revisto o tempo todo, como acompanhar uma ciência que não para, que traz respostas o tempo todo? Então, nós estamos eternamente tendo que buscar informações para, de fato, fazer uma intervenção coerente, pautada em ética e na ciência”, admitiu. 

Capacidade jurídica das pessoas com deficiência

Encerrando a programação, a juíza Katia Roncada, auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresentou a palestra “Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência”. A mediação foi realizada pelo juiz Arióstenes Guimarães, auxiliar da Presidência do TJTO.

Katia abordou os avanços normativos e os desafios práticos relacionados ao reconhecimento da capacidade jurídica plena das pessoas com deficiência. A magistrada destacou o alinhamento do ordenamento jurídico brasileiro com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem status constitucional, e com a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). A palestra reforçou que a superação de práticas tuteladoras, como a curatela irrestrita e decisões judiciais desproporcionais, exige mudança de cultura institucional. 

Depoimento

Ao longo do evento, participantes também compartilharam suas percepções sobre a importância da pauta e o impacto da programação. O advogado Agnaldo Quintino, que é um homem com deficiência visual, elogiou o protagonismo do TJTO na promoção da acessibilidade institucional:

“Antes de mais nada, quero parabenizar o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, que é o tribunal que está à frente de todos os tribunais no Brasil. A gente não vê no Brasil um tribunal tão preocupado com a acessibilidade. E as palestras deste evento, cada uma melhor que a outra. Todas foram incisivas, direto ao ponto, deram para passar muito conhecimento e mostrar para a sociedade em geral a importância da inclusão”, disse.

O que ficou após este evento é que a inclusão só se concretiza quando atravessa o discurso e alcança a prática. Quando deixa de ser pauta ocasional e se transforma em compromisso permanente, refletido nas decisões, nos acessos, nas linguagens e nos espaços. O que se ouviu no auditório do TJTO, nas falas e nos diferentes modos de se expressar, foi o chamado por uma Justiça que reconhece a diversidade como regra, e não como exceção. Porque sem acessibilidade plena, não há democracia plena. E sem escuta real, não há Justiça possível.

Todas as imagens deste conteúdo possuem descrição alternativa. O evento contou com tradução em Libras, legendagem e autodescrição durante as falas. 



FONTE

Tribuna do Tocantins

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