A infância de Maria Tereza foi, por muito tempo, medida na ponta de um dedo. Antes de cada refeição, vinha o suspiro tímido, o gesto de coragem e o pequeno furo que ela já sabia que doía. Aos nove anos, com autismo nível 2 de suporte e vivendo com diabetes tipo 1, a menina de Palmas enfrentava até dez perfurações diárias para manter o corpo seguro, uma rotina de dor silenciosa que só quem cuida sabe o peso que carrega.
Mas tudo começou a mudar quando uma decisão da Justiça lhe garantiu o sensor de glicemia em tempo real, rompeu um ciclo que parecia inevitável e devolveu à família respiro, esperança e um cotidiano sem sofrimento.
No Dia da Justiça (8/12), a força dessa história lembra que, por trás de cada sentença, existe alguém que respira aliviado, que recomeça, que encontra na Justiça um direito reconhecido e a chance de construir um novo futuro. São essas vidas transformadas que revelam o sentido maior da data, e da atuação do Judiciário na vida das pessoas.
Da dor ao alívio
Depois da sentença que mudou a rotina de Maria Tereza, o que se revela é a dimensão silenciosa de uma infância vivida entre cuidados, restrições e uma coragem que ela nunca soube nomear. Sua vida sempre contou com pequenos atos de resistência: controlar horários, medir alimentos, calcular doses, antecipar crises.
Se cuidar da diabetes já é um desafio para um adulto, imagine para uma criança. E, para uma pessoa com autismo, com sensibilidade ampliada ao toque, ao som, ao inesperado… tudo ganha outra dimensão.
Antes de cada refeição, vinha o ritual doloroso: furo no dedo, gotinha de sangue, aferição. Cinco vezes por dia, no mínimo. Em fases de acompanhamento médico, esse número mais que dobrava. Nos dias em que todos os dedinhos eram furados, ela não conseguia nem segurar um lápis. Escrever doía. Brincar doía. Escovar os dentes exigia uma força que nenhuma criança deveria precisar aprender tão cedo.
Foi por isso que a família entrou na Justiça, e a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) decidiu que Maria Tereza teria direito ao sensor de glicemia contínuo, um disco pequeno como uma moeda, aplicado discretamente na parte de trás do braço. Sem dor, sem furo, sem lágrimas.
O sensor monitora tudo em tempo real. Dez vezes por dia, vinte, cinquenta, quantas forem necessárias. Basta aproximar o aparelho do bracinho dela e a glicemia aparece, sem que Maria Tereza sinta absolutamente nada. Foi como sair da escuridão para uma janela aberta; como respirar aliviada depois de anos de apreensão.
“Transformou a vida dela”, diz a mãe, Lorenna Freire Dorcino.
A partir de então, o controle glicêmico melhorou, o medo de hipoglicemia e hiperglicemia diminuiu, as chances de complicações futuras reduziram, e a família ganhou paz.
A decisão judicial abriu essa porta. Para Maria Tereza, significou poder escrever sem dor, brincar sem medo e segurar um lápis sem o incômodo dos dedos feridos. Para a família, significou um alívio que abraça e acalma, “foi um divisor de águas”, conta Lorenna.
A mãe lembra que a filha é a primeira criança do município a receber o sensor “e, até onde as mães do grupo ‘Pais Pâncreas’ sabem, continua sendo a única”. Maria Tereza abriu um caminho que muitas outras ainda precisam trilhar.
Hoje, a menina usa o sensor com duração de 14 dias. Cuida do sensor como parte de quem é, inclusive na hora de brincar. Sua boneca preferida é uma Barbie diabética, com sensor no braço e bomba de insulina na cintura, um sopro de leveza num mundo que às vezes pesa demais.
O próximo sonho da família é conquistar, judicialmente, a bomba de insulina. “Para uma criança com autismo nível 2 de suporte, que às vezes acorda mais sensível, que entra em crise, que precisa ser segurada para receber as injeções… isso seria quase um milagre.”
Maria Tereza transformou uma luta em potência, e uma decisão judicial, em futuro.
Outros destinos transformados pela Justiça
Assim como ocorreu com Maria Tereza, outras histórias mostram que decisões judiciais não ficam restritas aos autos: elas atravessam vidas, abrem portas e plantam futuros.
Um documento, um começo
O dia 14 de maio marcou o recomeço para Jennifer Monteiro da Costa, 39 anos, mulher trans e em situação de rua. No CRAS Karajá I, durante a ação Registre-se, promovida pela Corregedoria-Geral da Justiça, ela deixou de ser invisível para se tornar sujeito dos próprios direitos.
Com apoio da Defensoria Pública, recebeu orientação para iniciar o processo de mudança de nome no Registro Civil, um passo simples no papel, mas imenso para quem teve a identidade negada. No mesmo dia, saiu com a segunda via da certidão de nascimento e a nova Carteira de Identificação Nacional, documentos que abriram portas antes inacessíveis.
E foi assim, com a documentação nas mãos e a primeira oportunidade de emprego surgindo, que Jennifer sintetizou sua transformação. “Com meu nome certo, posso trabalhar, me apresentar como sou. Isso muda tudo. Hoje eu existo. E agora sei que posso ser ainda mais feliz.”
O novo capítulo de uma família no Jalapão
A concessão da curatela provisória marcou um ponto de virada na vida de uma família de Mateiros. Depois de reencontrar o irmão, de 64 anos, em situação extrema, “chegando a comer lixo para sobreviver”, e acolhê-lo nos fundos de sua casa, a irmã buscava meios legais para garantir cuidados adequados e resgatar sua dignidade.
No mutirão do Pop Rua Jud, durante a ação Justiça Cidadã no Cerrado, ela encontrou a porta institucional que precisava. A atuação rápida do Judiciário, ao analisar o caso e conceder a curatela de forma imediata, fez com que aquela vulnerabilidade deixasse de ser invisível e passasse a ser tratada como prioridade.
Desde então, o processo avança com visitas técnicas da Psicologia e do Serviço Social, e com audiência já marcada para 17 de dezembro, em Palmas. A decisão abriu caminho para que o irmão acessasse direitos básicos, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), solicitado no próprio mutirão graças à articulação entre Justiça, INSS e instituições parceiras.
Paralelamente, a irmã também deu entrada em sua aposentadoria por idade, apostando que, em breve, ambos terão garantias mínimas para reconstruir a vida. Entre perícias, laudos e acompanhamentos, a trajetória evidencia o papel do Judiciário em romper ciclos de abandono, restaurar direitos e devolver esperança.
O impacto da Justiça que transforma
Casos como esses revelam que fazer Justiça significa transformar destinos, aliviar sofrimentos e devolver dignidade. No Tocantins, essas mudanças chegam por meio de sentenças, mediações, acolhimentos, mutirões, atendimentos itinerantes e políticas públicas articuladas.
A presidente do TJTO, desembargadora Maysa Vendramini Rosal, lembra que a essência do Judiciário se revela nas histórias de cada cidadão(ã).
“A Justiça não vive apenas nos processos, ela se revela, principalmente, na vida das pessoas. Cada decisão que transforma sofrimento em alívio, medo em proteção e incerteza em recomeço consolida o nosso compromisso com um Judiciário humano, acessível e atento à realidade de quem mais precisa. No Dia da Justiça, celebramos as vidas que tocamos e as novas possibilidades que ajudamos a construir.”
O corregedor-geral da Justiça, desembargador Pedro Nelson de Miranda Coutinho, reforça a importância da atuação estruturante.
“Cada sentença, cada despacho, é resultado de um trabalho árduo e dedicado de servidores e magistrados que buscam um Judiciário mais eficiente e humano. Nossa missão é garantir que a justiça seja feita com celeridade, qualidade e efetividade, atendendo às necessidades da sociedade.”
A costura institucional que sustenta cada história
Para fazer Justiça, o Judiciário não caminha sozinho. O Ministério Público teve papel essencial ao recorrer pelo sensor de Maria Tereza. Em mutirões de documentação civil, a Defensoria Pública é presença constante.
Como destaca o procurador-geral de Justiça, Abel Andrade Leal Júnior, diariamente, o trabalho do Ministério Público se converte em conquistas para as pessoas que procuram a instituição, clamando por cidadania plena.
“Mas o MP não está sozinho nesse trabalho. Toda a estrutura do Sistema de Justiça se move para garantir que o idoso vulnerável encontre o amparo necessário, que a mulher vítima de violência seja protegida e que o enfermo tenha acesso aos medicamentos essenciais. O Poder Judiciário, em particular, é peça indispensável e atua de forma constante na garantia dos direitos fundamentais.”
Segundo o defensor público-geral do Estado do Tocantins, Pedro Alexandre Conceição Aires Gonçalves, a Defensoria Pública se apresenta como instrumento do regime democrático e como garantidora de direitos humanos a toda a população, notadamente aquelas pessoas que mais precisam.
“A Defensoria Pública tem um papel essencial de abrir as portas do sistema de justiça à população que, por vezes, não tem condições de, por suas próprias expensas, a seus próprios custos, fazê-lo. E neste Dia da Justiça, a Defensoria Pública do Tocantins saúda o Poder Judiciário e todas as demais instituições do sistema, frisando que no Estado do Tocantins, todas as pessoas, independente de condições, podem ter acesso em todas as localidades do Estado”, disse ao lembrar que as portas do sistema de justiça estão abertas a todos(as) do Estado.
Dia da Justiça
As histórias de Maria Tereza, Jennifer e a família de Mateiros mostram que a Justiça é uma experiência diária, de transformação concreta e futuro possível. O olhar sensível de magistrados(as), procuradores(as), promotores(as), defensores(as) e advogados(as) é parte fundamental desse processo.
No fim, cada sentença conta uma história. Cada decisão, da mais simples à mais complexa, pode significar vida digna, proteção e autonomia para quem busca, na Justiça, um caminho possível.