A bacia que alimenta o Tocantins e o alerta da escassez


A água, que por tantos anos correu livre na Bacia do Rio Formoso, em 2016, começou a desaparecer no sudoeste tocantinense. Uma das mais importantes bacias do estado e ecossistemas mais vitais do Cerrado começou a dar sinais de colapso em um cenário de uso desenfreado, irrigação sem medida e captações que não respeitavam o tempo da natureza, ou o direito à água de quem vive dela.

Foi nesse cenário de escassez e urgência que surgiram os primeiros ecos de uma história que mudaria os rumos da região. Uma história de conflito, mas também de reconstrução em que a Justiça foi chamada a agir não com força, mas com equilíbrio para possibilitar produção e preservação, progresso e responsabilidade.

Ao completar exatos 9 anos da intervenção judicial que mudou o rumo da Bacia do Rio Formoso, o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) abre a série de reportagens “Divisor de Águas”, que resgata a memória de um tempo em que o silêncio das águas dava lugar ao grito da escassez  e ao descontrole no uso dos recursos hídricos, e revela como a união entre Justiça, ciência e diálogo transformou um cenário de incertezas em um pacto de sustentabilidade. Nesta primeira matéria, destaca-se o valor ambiental, econômico e simbólico da bacia, bem como os sinais do desequilíbrio que acenderam os primeiros alertas no sudoeste do estado.

 

O ventre do Cerrado

Mais que um território, a Bacia do Rio Formoso é um organismo vivo. Suas veias d’água alimentam populações, lavouras, campos e sonhos. Com 21.328,57 km² de área de drenagem, ela representa 7,7% do território do Tocantins e 5,6% da Bacia do Rio Araguaia. Sua área possui quase o mesmo tamanho do Estado de Sergipe (com 21.910 km²) e é maior que países como El Salvador (com 21.040 km²).

É um cenário de vastas veredas, campos alagados e canais que cortam 15 municípios, levando fertilidade e vida por onde passam: 

Entre os rios Dueré, Formoso, Urubu e Xavante, está localizado um dos maiores polos agrícolas do país, uma região que se tornou referência em produtividade irrigada no Cerrado brasileiro.

Foto aérea de campos irrigados com plantio na região da Lagoa da Confusão
Região é referência em produtividade irrigada no Cerrado brasileiro

Sua importância vai além da geografia. A bacia é uma das maiores produtoras de arroz irrigado do país. Na safra 2023/2024, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), foram mais de 560 mil toneladas de grãos colhidos, o que colocou o Tocantins em 3º lugar no ranking nacional, atrás apenas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

“Nós estamos numa região de várzea muito importante, não só para o estado, mas para o Brasil”, pontua o engenheiro agrônomo e consultor da Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins (Aproest), Adrian da Silva, ao comentar o desempenho de Lagoa da Confusão, hoje o quarto maior produtor de arroz irrigado do país.

Mas não é só arroz. A bacia também alimenta a cadeia produtiva de soja, milho e frutas tropicais, como melancia e açaí. Um desses visionários é Wilson Grison, produtor que apostou na força do solo tocantinense há 14 anos.

Produtor Wilson Grison, um senhor de pele e cabelos brancos; ele usa camiseta verde e ao fundo aparece uma palmeira
Wilson Grison apostou no solo tocantinense há 14 anos, quando deu início aos primeiros plantios de açaí na região

“Essa região das várzeas tropicais do Cerrado brasileiro, que estão situadas próximos à Ilha do Bananal, tem um excepcional potencial para agricultura irrigada, tendo em vista a característica da região de ser muito plana, um solo com bastante matéria orgânica, e nós temos aqui na região um potencial enorme de infraestrutura de suporte, tanto no fornecimento de produtos, quanto na assistência técnica de máquinas e tecnologia”, destaca.

Foi exatamente esse potencial da região que atraiu Grison, que cita também a logística.  “Nós começamos a fazer o primeiro plantio de açaí há 14 anos. Hoje, nós temos uma área de 135 hectares, que é um dos dez maiores projetos do Brasil, e estamos com um aprendizado muito grande, numa cultura muito nova, e que permite pensar numa expansão significativa”, completa Grison.

 

A abundância virou escassez

Mas toda abundância mal cuidada cobra seu preço. O avanço acelerado das produções agrícolas na região, os sistemas de irrigação em larga escala sem controle por parte dos órgãos ambientais e a estiagem prolongada trouxeram consequências. O desequilíbrio entre o que se retira e o que se devolve à natureza fez com que os rios deixassem de correr como antes.

Imagem de terra vermelha e um pouco de água que sobrou de um rio
Cenário de escassez em rio na região de Lagoa da Confusão, em 2016, quando a Bacia do Rio Formoso esteve à beira do colapso

Com o tempo, essa situação transformou a bacia em palco de disputa: escassez hídrica, conflitos entre usuários, danos ambientais e desabastecimento.

Entre 2015 e 2016, o alarme soou com força. Populações enfrentando falta d’água para consumo humano, produtores em impasse pela escassez hídrica, órgãos ambientais pressionados, e um rio agonizando em silêncio.

Segundo o professor Jair da Costa, representante do Comitê de Bacia do Rio Formoso, a bacia possui grandes oscilações nos volumes disponíveis ao longo do ano, em função da má distribuição das chuvas, e no final do período seco muitos rios da bacia secam. Ele explica que esse fenômeno aliado ao uso irregular das águas gerou o problema. 

Adrian da Silva acrescenta que os conflitos ocorreram porque as áreas cultivadas foram crescendo, os plantios se expandiram e não houve uma gestão e monitoramento integrado na bacia, principalmente em anos em que choveu menos, gerando escassez de água.

Engenheiro Adrian, homem de pela clara, barba e cabelos grisalhos; ele usa camisa rosa clara e está à frente de um prédio e palmeiras

 “Quando o crescimento não vem de forma organizada, acaba gerando conflito pelo uso da água. O produtor vai lá, faz a barragem dele e segura a água para poder bombear. Já o produtor que não tem barragem acaba se ressentindo, porque fica com a impressão de que o rio está secando, que o rio secou por causa da barragem feita por outro”, pontuou o engenheiro agrônomo Adrian da Silva.

O produtor da região da Lagoa da Confusão, Josney Rosa, conta que, na época, todas as áreas irrigadas da fazenda que administra ficaram comprometidas.“A gente acabou perdendo em torno de 40% da produção. Foi um prejuízo grande”, lamenta.

 

Um chamado à Justiça

Diante do impasse, o Ministério Público do Tocantins (MPTO) recorreu ao Poder Judiciário. No dia 1º de agosto de 2016, com um problema hídrico instalado na Bacia do Rio Formoso, o MPTO propôs a primeira ação judicial perante o Poder Judiciário do Tocantins, na Comarca de Cristalândia, pedindo a imediata suspensão de todas as outorgas de direito de uso dos recursos hídricos, assim como de todas as licenças ambientais dos usuários irrigantes.

Conforme o promotor de Justiça Jorge José Maria Neto, na época, o Ministério Público percebeu que havia diversas denúncias de captação irregular dos recursos hídricos na Bacia do Rio Formoso. “Quando o MP recebia essas denúncias, nós íamos atrás dos produtores, firmávamos com eles, às vezes, alguns termos de ajuste de conduta, mas o que nós percebemos é que aquilo era insuficiente.”

O promotor comenta que não havia nenhum tipo de gestão na Bacia do Rio Formoso.

“Nós não tínhamos nenhum tipo de controle de captação (de água).”

Ele informa que havia os órgãos estatais responsáveis pela fiscalização ambiental, como Naturatins, mas estavam “inertes” diante da  “crise” que se agravava.

O juiz da Comarca de Cristalândia, Wellington Magalhães, diz que a ação do Ministério Público foi motivada pela urgente necessidade de regular a exploração dos recursos hídricos da Bacia do Rio Formoso. Naquele ano, a região sofria tanto pelo uso desordenado da água nos projetos de irrigação quanto pela seca extrema que afetava todo Brasil.

“Por meio dessa ação que contestava a captação irregular e desenfreada de água na bacia do Rio Formoso, em 2016, nós iniciamos então um trabalho”, recorda-se o magistrado.

E o que se viu a partir dali foi o começo de uma nova história.



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