Justiça que vê a cor e reconhece histórias
A história de uma mulher negra poderia ter passado despercebida em meio aos números da violência doméstica no Tocantins. Seria mais um boletim, mais uma dor silenciada. Mas, quando chegou ao Judiciário, a juíza Renata do Nascimento e Silva, da Comarca de Paraíso do Tocantins, observou como a vítima descreveu as agressões que sofria do companheiro. Entre os xingamentos, havia um “nego urubu” e a magistrada viu que não se tratava apenas de um insulto. Era a reafirmação cruel de um país onde a cor define quem mais luta para existir.
Ao analisar o caso nos autos, a juíza decidiu aplicar, de forma concreta, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), destinado a orientar magistrados e magistradas na análise de processos em que a dimensão racial influencia fatos, provas, testemunhos e trajetórias.
A juíza reconheceu que aquela mulher era vítima de dupla violência: a de gênero e a racial. E a decisão, publicada no último domingo (16/11), condenou o réu por injúria racial e registrou que o ataque não feria apenas a dignidade individual da vítima. O insulto racista atingia toda a coletividade negra, perpetuava estereótipos e alimentava o racismo estrutural que atravessa o país.
O caso dessa mulher reflete um gesto de Justiça que olha para a história, para as desigualdades e para as vidas que chegam ao Judiciário marcadas por séculos de exclusão. Representa um movimento crescente no sistema de Justiça brasileiro que busca incorporar a perspectiva racial como condição para que a promessa da igualdade, inscrita na Constituição, se concretize na vida de todos. E esse movimento ganha força especial neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data que não se limita a lembrar o passado, mas convoca presente e futuro.
No Brasil, a maioria da população é negra (pretos e pardos) e, no Tocantins, mais de 75% das pessoas se declaram pretas ou pardas, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao mesmo tempo, a população negra é maioria entre os desempregados, entre as vítimas de homicídio e entre as pessoas privadas de liberdade.
Essas desigualdades são consequências históricas. Ignorá-las, ao julgar, significa produzir injustiças silenciosas.
Para a presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO), desembargadora Maysa Vendramini Rosal, o compromisso do Poder Judiciário é construir uma Justiça que reconheça histórias, contextos e desigualdades, e não se furte ao enfrentamento do racismo.

“Adotamos o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial porque entendemos que uma Justiça verdadeiramente igualitária exige sensibilidade, responsabilidade e coragem moral”, ressalta a presidente do TJTO.
Nesse sentido, a desembargadora Maysa afirma que o Tribunal continuará atuando para que cada decisão reflita o respeito à vida, à cidadania e à pluralidade do povo tocantinense.
Escuta, contexto e equidade racial
Sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, instituído pela Resolução nº 598/2024 do CNJ, a juíza Renata do Nascimento explica que o documento representa uma virada histórica na atuação do Poder Judiciário brasileiro. Para ela, a importância do Protocolo está no reconhecimento de que o direito não é neutro e de que a magistratura possui responsabilidade ativa no enfrentamento ao racismo estrutural.

“Para nós, magistrados e magistradas, o Protocolo é um instrumento que nos desafia a questionar nossos próprios vieses inconscientes e a compreender que julgar com perspectiva racial não significa abandonar a imparcialidade, mas sim exercê-la de forma verdadeiramente justa, considerando as particularidades históricas e sociais que marcam a experiência de pessoas negras no Brasil”, enfatiza a juíza Renata do Nascimento.
A juíza reforça que o documento transforma a escuta, a produção de prova e a valoração do contexto. Na escuta, conforme cita, o Protocolo promove acolhimento sensível às vivências de pessoas racializadas, reconhecendo que a injúria racial não é apenas ofensa individual, mas violência que ecoa a desumanização histórica da população negra.
Na produção de prova, segundo ela, alerta para manifestações sutis de racismo e para o risco de revitimização, exigindo ambientes de oitiva respeitosos.
Na valoração do contexto, “talvez seja aqui a mudança mais profunda. O Protocolo exige que reconheçamos o racismo estrutural como elemento presente nas relações sociais brasileiras. Isso significa, por exemplo, compreender que expressões como ‘nego urubu’, ‘macaco’ ou ‘preto macaco’ não são ‘meras palavras proferidas no calor da emoção’, mas manifestações de um sistema de opressão que atribui menos valor, dignidade e humanidade às pessoas negras.”
A valoração do contexto implica também reconhecer a interseccionalidade. “No caso que julguei, a vítima era simultaneamente mulher e negra, o que potencializa sua vulnerabilidade e exige uma resposta jurisdicional que considere essas múltiplas dimensões de opressão”, frisa a juíza.
Para a magistrada, fazer justiça com humanidade significa enxergar pessoas, histórias e dores que ultrapassam o processo. Significa reconhecer a memória de mais de três séculos de escravização e entender que o Judiciário precisa romper com práticas que perpetuaram desigualdades e se tornar um lugar de acolhimento, de escuta respeitosa e de decisões que contribuam para a construção de uma sociedade efetivamente igualitária.
“É também ter coragem de nomear o racismo onde ele existe, sem eufemismos ou minimizações. É aplicar a lei com firmeza, mas também com sensibilidade para compreender as particularidades de cada caso e as vulnerabilidades específicas de cada vítima”, diz Renata.
Segundo a juíza, fazer justiça com humanidade é reconhecer que magistrados e magistradas são agentes de transformação social. “Nossas decisões têm o poder de legitimar ou de romper com estruturas de opressão. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial nos convoca a escolher conscientemente o lado da justiça, da dignidade e da igualdade”, afirma.
Olhares que transformam
Na prática, são as decisões de quem julga que vão abrindo caminho para uma Justiça mais igualitária.
O juiz Jean Fernandes Barbosa de Castro, da Comarca de Taguatinga, destaca que o Dia da Consciência Negra é também um chamado para que o Poder Judiciário rompa paradigmas de invisibilidade racial e fortaleça o reconhecimento da identidade e dos direitos de comunidades quilombolas, povos indígenas e população negra em geral.
O assunto é tema da tese de doutorado do juiz. Ao dialogar com teorias como a da Justiça como Equidade, de John Rawls, e a do Reconhecimento, de Axel Honneth, o magistrado lembra que igualdade material exige tratamento diferenciado para quem historicamente foi colocado à margem.

“Tornar as decisões judiciais mais justas para grupos minoritários é um dos grandes desafios do Poder Judiciário e, quando se celebra o Dia da Consciência Negra, é um momento de grande relevância para publicizar toda a preocupação institucional do Poder Judiciário, publicamente, para se garantir que o princípio da igualdade material se torne uma realidade”, diz o juiz Jean Barbosa.
O magistrado José Ribamar Mendes Júnior, da Vara da Justiça Militar, reforça a dimensão simbólica e concreta do 20 de novembro. Ao lembrar Zumbi dos Palmares e a luta histórica da população negra contra a escravidão, o racismo e a desigualdade, ele sublinha que a atuação jurisdicional é essencial para transformar essa memória em prática.

“Decisões judiciais sobre ações afirmativas, cotas raciais, combate ao racismo e reparações históricas revelam a importância de uma Justiça comprometida com os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da não discriminação”, cita o juiz José Ribamar.
Para o juiz, o Dia da Consciência Negra e a atuação judicial se articulam na busca por uma sociedade mais justa e inclusiva, em que o reconhecimento e a valorização da identidade negra sejam efetivos e protegidos pelo Estado.
Bases que moldam uma Justiça que planta equidade
Além da área jurisdicional, o Judiciário do Tocantins vem fortalecendo políticas internas e estruturas permanentes de compromisso com a equidade, como a Política de Equidade de Gênero e Racial, instituída pela Resolução nº 31, que orienta a promoção de um ambiente de trabalho plural, inclusivo e livre de discriminação.

A Comissão Gestora de Política de Equidade de Gênero e Raça, vinculada à Presidência do Tribunal Justiça do Tocantins (TJTO), é responsável por planejar, acompanhar e propor ações estratégicas voltadas à diversidade.
A Comissão de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação, instituída pela Portaria nº 1500/2021 atua com foco educativo, preventivo e restaurativo para garantir canais institucionais de denúncia, acolhimento e tratamento dos casos.
Suas atribuições vão desde o monitoramento de práticas discriminatórias a sugestão de melhorias na gestão de pessoas e nas condições de trabalho. A comissão também atua na proposição de campanhas educativas e ações de formação e articulação com a Ouvidoria Judiciária e demais unidades para o recebimento e encaminhamento de denúncias.
Além disso, na área de formação, iniciativas como a Semana de Diálogos sobre Igualdade e Diversidade reforçam o compromisso institucional com temas que atravessam debates como equidade racial e direitos das comunidades tradicionais.
Essas estruturas afirmam o caminho de um Judiciário que se compreende também como espaço de educação em direitos humanos, de reparação simbólica e de promoção de um ambiente de trabalho humanizado.
A presidente da Comissão Gestora de Política de Equidade de Gênero e Raça do TJTO, desembargadora Etelvina Maria Sampaio Felipe, destaca que o trabalho desenvolvido pelo grupo segue as diretrizes da Portaria nº 651/2025 e da Resolução CNJ nº 540/2023, que estabelece a paridade de gênero com perspectiva interseccional de raça e etnia no Poder Judiciário.
“A Comissão tem atuado para fortalecer, de forma concreta, a cultura de respeito, diversidade e representatividade dentro do Poder Judiciário. Nosso compromisso é estimular e disseminar práticas que contribuam para eliminar desigualdades raciais e garantir que nossas ações reflitam a sociedade plural que servimos”, destaca a desembargadora.

“Nosso desafio é permanente. Por isso, insistimos na abordagem contínua do tema para construirmos um Judiciário mais equânime. Essa tem sido a marca da nossa Comissão. Seguiremos firmes para que a justiça que entregamos à sociedade reflita, cada vez mais, o respeito à diversidade e à história do povo brasileiro”, ressalta.



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