O legado da Justiça e os desafios futuros que correm nas águas Cerrado
Desde que o silêncio das águas da Bacia do Rio Formoso passou a gritar por socorro, há nove anos, muita coisa mudou, mas a travessia ainda não terminou. O que era conflito, virou pacto. O que antes era urgência, hoje é sistema. E o que parecia apenas um processo judicial, transformou-se em modelo de gestão hídrica, construído sobre os pilares do diálogo, da ciência e da justiça.
Na terceira e última matéria da série especial “Divisor de Águas”, o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) mostra como a reconstrução da Bacia do Rio Formoso segue viva, desafiadora e inspiradora. Uma jornada que começou com uma Ação Cautelar e que hoje se sustenta em um ecossistema técnico, social e jurídico robusto, com olhar voltado para o futuro.
Um novo rio sob vigilância
À frente desse processo desde o início, o juiz Wellington Magalhães, da Comarca de Cristalândia, carrega a firmeza e a sensibilidade de quem conhece o caminho. “Não posso afirmar que alcançamos 100% de controle sobre os recursos hídricos na bacia, mas houve avanços significativos”, afirma.
Entre esses avanços, destaca-se a criação do Sistema de Gestão de Alto Nível (GAN), ferramenta de monitoramento remoto da disponibilidade e da demanda hídrica. Também foram instaladas estações de telemetria, que monitoram o nível dos rios, e medidores de captação, que medem em tempo real o
uso da água.

Atualmente, existem dezenas de estações de monitoramento da demanda hídrica na bacia.
Outro marco citado pelo magistrado é o sistema semafórico, que estabelece níveis de alerta hídrico.
“Tudo isso, posso dizer, que se trata de um grau elevado de inovação e evolução na gestão dos recursos hídricos da Bacia do Rio Formoso”, avalia.
Esse conjunto de ferramentas, somado à atuação do Judiciário, transformou um conflito ambiental em um caso reconhecido nacionalmente, premiado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2020, na categoria “Pesquisa e Inovação”.
Gestão com alma coletiva
Para o professor e engenheiro Fernán Vergara, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), um dos idealizadores do GAN, a experiência da Bacia do Rio Formoso é exemplo de sucesso.
Mas diz que o sistema só será duradouro se continuar sendo coletivo. “É preciso consciência compartilhada”.

Hoje, a medição de vazões em tempo real é uma realidade na região, acompanhada de perto por técnicos da ANA e aplicada especialmente a grandes usuários.
Segundo Vergara, a condução do processo pelo Judiciário, com foco na mediação e não na imposição, foi fundamental. “É um processo demorado, mas que tem resultados muito mais efetivos do que apenas seguir ritos legais que podem levar a disputas judiciais em instâncias superiores”, afirma, destacando que isso poderia se arrastar em instâncias superiores e gerar danos ambientais irreversíveis.
Essa consciência colaborativa deu origem a um novo modelo de governança hídrica. A Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins (Aproest), liderada por Wagno Milhomem, tornou-se peça-chave nesse arranjo.
“Hoje, a realidade é completamente diferente da que existia no início. A região está inteiramente monitorada. Todo uso da água é acompanhado de forma criteriosa, o que trouxe não apenas mais racionalidade no consumo, mas também garantias ambientais significativas”, cita Milhomem.
Ele comenta que esse resultado é fruto de um arranjo institucional sólido, que une o Poder Judiciário, o Ministério Público, órgãos de estado e a Associação dos Produtores em torno de um objetivo comum: “garantir que a agricultura irrigada cresça de forma sustentável e atrativa para novos investimentos, amparada em uma base organizada e comprometida com o futuro da região.”
Para o gerente de Controle e Uso dos Recursos Hídricos do Estado, Mateus Chagas, a judicialização dos conflitos pelo uso da água na Bacia do Rio Formoso tem sido um marco transformador na forma como a fiscalização e a gestão hídrica são conduzidas na região. “O processo judicial funcionou como um gatilho para mudanças estruturantes”, diz.
Mas, mesmo com os avanços, principalmente a partir da implantação do sistema GAN, o gerente cita que ainda há desafios operacionais no módulo digital de fiscalização e emissão automática de relatórios e alertas, que segundo ele é essencial para consolidar uma política preventiva e inteligente de controle.
“A judicialização teve papel decisivo. O conflito gerou o incômodo necessário para promover mudanças profundas. Hoje temos um plano consolidado, fiscalização mais presente, controle digital e a participação ativa dos usuários. O que era apenas um problema jurídico, virou um projeto de governança hídrica”, concluiu.
Mudança de cultura: o maior legado
A mudança de cultura é, talvez, o maior legado desse processo. O produtor Josney Rosa conta que hoje a água é tratada com o respeito que merece. Segundo ele, a instalação do sistema de telemetria nos pontos de bombeamento e nas elevatórias representa um marco importante, pois o monitoramento em tempo real passou a fornecer dados precisos, fundamentais para a tomada de decisões mais conscientes e técnicas.

Aliado ao sistema semafórico, que orienta o uso da água com base na disponibilidade hídrica, o produtor destaca que o manejo tornou-se mais eficiente, equilibrando a irrigação com a preservação ambiental. “O resultado foi uma produção agrícola mais segura e comprometida com as regras estabelecidas, sem abrir mão da responsabilidade socioambiental”, afirma Josney Rosa.
“Com esse novo modelo de gestão, produtores passaram a irrigar com maior previsibilidade, respeitando os limites e garantindo a proteção dos recursos naturais”, completa ele.
O produtor cita o avanço que reforça o protagonismo da agricultura irrigada no desenvolvimento sustentável da região.
Do conflito à inspiração
“A Bacia do Rio Formoso virou referência”, afirma o diretor do Projeto de Irrigação, Euvaldo Pinheiro. “Mas a continuidade desse modelo depende de um comitê de bacia estruturado e atuante. O que funciona aqui precisa inspirar outros projetos no Brasil.”
A linha do tempo confirma o tamanho dessa construção: desde a primeira ação judicial em 1º de agosto de 2016, passando pelas audiências públicas, pelo ingresso da UFT como “amicus curiae”, pela criação do GAN, até a elaboração da sentença estrutural e o reconhecimento nacional do modelo. Tudo feito com a escuta como base e com o equilíbrio como meta.
Para o produtor Varlei Alves Ribeiro, o maior ganho está na mentalidade. “O que temos é um amadurecimento. Não só das regras, mas da mentalidade dos produtores. Hoje entendemos que proteger a água é garantir o nosso futuro.”
Sentença que vira semente, rio que continua
A Sentença Estrutural da Bacia do Rio Formoso, construída a muitas mãos, reúne 27 medidas pactuadas entre todos os atores envolvidos: Ministério Público, Judiciário, produtores, órgãos de Estado e a sociedade civil.
Essa construção segue firme e o cumprimento das medidas é monitorado de perto. Em 2024, mais de R$ 3 milhões em multas foram aplicadas contra infratores, um sinal claro de que a Justiça segue vigilante.
“Essa ação conseguiu implantar uma gestão de controle de forma eficiente dos recursos hídricos, obviamente que ainda estamos caminhando”, afirma o promotor de Justiça Jorge José Maria Neto.
“Há muito a ser feito, há muito a ser melhorado, mas se nós pegarmos o cenário de 2016 e comparamos com o de hoje, nós evoluímos muito”, ressalta ele.
“Essa ação marca um processo de virada, numa gestão eficiente, moderna e que se preocupa primordialmente com o desenvolvimento sustentável”, acrescenta o promotor.
O futuro que flui com a Justiça
É um divisor de águas, na prática e no conceito. Hoje, o que se vê é mais do que o resultado de um processo bem conduzido, é a semeadura de um novo paradigma, onde a água é gerida com base no diálogo, na ciência e na corresponsabilidade.
Para o produtor Wilson Grison, os principais desafios da região hoje envolvem o fortalecimento do ordenamento jurídico, o incentivo à inovação tecnológica e o apoio aos produtores. “Precisamos gerar tecnologia, ampliar a produção para abastecer o Brasil e o mundo”, destaca ele, citando que é fundamental gerar empregos e preservar o meio ambiente.
As secas continuarão a chegar, os ciclos naturais seguem, e os riscos não desapareceram. Mas agora há governança, ferramentas, consciência, um pacto em andamento em prol da sustentabilidade como o único caminho viável para um futuro possível.

O juiz Wellington Magalhães, que está à frente dessa jornada desde o início, resume com precisão: “Mais do que resolver um processo, é preciso enfrentar o problema. Decidir isoladamente seria simples, deferir ou indeferir pedidos, encerrar autos. Mas os rios da Bacia do Rio Formoso continuariam padecendo sob a ausência de controle efetivo do Estado. Este caso, porém, nos trouxe algo maior: a chance real de transformação”, resume.
“Diante da crise, nasceu uma oportunidade de evolução, de amadurecimento institucional e de um pacto coletivo por soluções sustentáveis. Estamos diante de um momento histórico, em que é possível, e necessário, provar que é viável conciliar a força da produção agrícola com a preservação do meio ambiente”, continua o magistrado.
“Esta é uma jornada de reconstrução. E, nela, todos têm um papel fundamental a cumprir”, ressalta ele.
A água é um bem comum, uma responsabilidade coletiva e uma causa que avança com pacto, técnica, consciência e Justiça. Que o exemplo da Bacia do Rio Formoso continue fluindo, como os próprios rios, que agora correm com mais fôlego e mais esperança.
Leia também:
A bacia que alimenta o Tocantins e o alerta da escassez
O papel do Judiciário tocantinense na reconstrução da Bacia do Rio Formoso
Comentários estão fechados.