O papel do Judiciário tocantinense na reconstrução da Bacia do Rio Formoso
Num cenário de disputa e incertezas, onde as águas da Bacia do Rio Formoso já não corriam como antes, a Justiça brotou como nascente de esperança. O Poder Judiciário surgiu como instância crucial para mediar interesses, garantir direitos e preservar o meio ambiente.
No coração do Cerrado, a intervenção judicial na bacia não foi apenas uma resposta à escassez hídrica, foi uma reconfiguração de sentidos: da água, como bem comum; da Justiça, como instrumento de equilíbrio; e da produção, como aliada da preservação.
Tudo começou com uma Ação Cautelar proposta pelo Ministério Público do Tocantins (MPTO), que exigia medidas urgentes para conter o uso desenfreado da água na região. Diante da gravidade da situação, o Poder Judiciário do Tocantins suspendeu atividades de captação em diversas propriedades e impôs multas diárias por descumprimento.
Mas diante da situação, era preciso mais do que uma decisão judicial. Era necessário o diálogo entre mundos, o acolhimento da ciência e a escuta das vozes do território.
“A ação foi ajuizada contra o estado do Tocantins e contra o Naturatins (instituto Natureza do Tocantins), mas, ao mesmo tempo, não se tratava de uma ação comum. Ao contrário, talvez ali fosse um dos processos estruturais mais importantes que nós tivemos”, pontua o promotor de Justiça Jorge José Maria Neto.


E foi assim que o Judiciário assumiu um papel corajoso de mediador e articulador de um pacto coletivo pelo futuro da água no sudoeste tocantinense. A judicialização do caso hídrico na Bacia do Rio Formoso revelou também a urgência de uma nova cultura jurídica que compreendesse a água não apenas como um recurso econômico, mas como um direito de todos. Nesse sentido, o Judiciário buscou integrar o conhecimento técnico-científico aos valores da justiça socioambiental, promovendo ações mais participativas e preventivas.
Na ocasião, o Judiciário convidou a Universidade Federal do Tocantins (UFT) para atuar no processo na condição de “amicus curiae” (amigo da Corte), termo usado para identificar colaborador externo que oferece conhecimento técnico para o caso, sem defender interesse próprio no processo.
Sob a condução do juiz Wellington Magalhães, da Comarca de Cristalândia, nasceu um projeto de gestão hídrica inédito, estruturado em quatro etapas fundamentais:
🌨 Diagnóstico hídrico – Mapeamento das estações de monitoramento de chuvas e níveis dos rios; |
📈 Levantamento das demandas – Cruzamento de dados entre outorgas emitidas e captações reais; |
🚿 Telemetria das bombas – Monitoramento em tempo real das vazões captadas; |
📄 Revisão das outorgas – Ajustes nos direitos de uso da água com base em dados consistentes. |
Com o apoio da UFT, começou a ser desenvolvida uma ação sustentável, o projeto Gestão de Alto Nível na Bacia do Rio Formoso.
“Primeiro era preciso fazer um diagnóstico da disponibilidade e real demanda hídrica, trabalhar o monitoramento e, por fim, fazer a revisão de todas as outorgas, sobre as quais sequer havia controle na época”, resume o juiz.
No caso das outorgas, o magistrado conta que houve o alinhamento de diversos produtores com as demais regras de licenciamento ambiental e de cadastro ambiental rural.
Diálogo

Para avaliar as etapas do projeto e tomar frente diante dos desafios que surgissem, foram realizadas 17 audiências públicas que marcaram a transformação de um processo judicial em construção coletiva. A primeira delas ocorreu no dia 5 de dezembro de 2016, com a presença de todas as partes e seus representantes legais.
Na época, o magistrado conta que chegou a pedir apoio da Polícia Militar, tendo em vista o grande número de produtores e máquinas agrícolas nas imediações da Câmara Municipal de Lagoa da Confusão, onde aconteceu a primeira audiência. “Até então poucos tinham conhecimento de que a proposta de mediação liderada pelo Poder Judiciário tinha como objetivo garantir a continuidade da produção agrícola com respeito às leis ambientais”, comentou.
Sentaram-se à mesma mesa: produtores rurais, comunidades ribeirinhas, povos indígenas, órgãos ambientais, universidade, entidades do terceiro setor e representantes do agronegócio. “Ao final daquela audiência, lembro-me dos produtores comemorarem o acordo firmado em torno de uma gestão de alto nível dos recursos hídricos da bacia do Rio Formoso”, cita o magistrado.
Foi nesse encontro de vozes que nasceu o Sistema de Gestão de Alto Nível (GAN), resultado da união de esforços de todos os envolvidos e mediação do Poder Judiciário.
A ferramenta foi desenvolvida pela UFT e funciona de forma on-line, em tempo real. As informações são monitoradas pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão fiscalizador no Estado, e pela Agência Nacional de Águas (ANA).
Segundo o professor Fernán Vergara, que é engenheiro especialista em Recursos Hídricos e um dos idealizadores do sistema, dado o problema de haver mais captação de água do que o permitido, havia a necessidade de saber exatamente quanto os usuários retiravam dos rios. Com isso, foi desenvolvido o GAN, sistema de medição e transmissão de dados em tempo real que faz referência a uma gestão de alta precisão, permitindo saber exatamente quanto cada bomba está captando e se essa quantidade era condizente com o outorgado pelo órgão gestor da água, no caso o Naturatins.
Foram instalados medidores de vazão ultrassônicos em 130 bombas de captação espalhadas pela bacia e custeadas pelos próprios produtores. As informações são enviadas para o sistema GAN e, para saber a situação de cada bomba, em tempo real, basta acessar o sistema, na internet. A cor verde indica que a bomba está ligada; a cinza, desligada; e o X, que está desativada e requer atenção.

“Na prática, a UFT acabou se tornando amigo da corte nesse processo, dando pareceres de caráter técnico para assessorar as decisões jurídicas do TJ, uma vez que ocorreu a judicialização do conflito, e as decisões não mais seriam do âmbito administrativo, como o marco regulatório prevê”, explica Vergara.
Com isso, a UFT levou uma série de discussões, como regras de operação de captações em períodos críticos e a necessidade de revisar as outorgas pelo uso da água, “seja a partir da disponibilidade hídrica, que precisava ser revista, como da demanda hídrica, por perceber que as solicitações de água pelos usuários muitas vezes tinham valores discrepantes”, ressaltou.

O nível da água dos rios também passou a ser monitorado constantemente para evitar colapso. O sistema GAN recebe informações das 25 estações de monitoramento da Bacia do Rio Formoso. Foi criado um sistema semáforo com regras de operação. Caso entre um nível de atenção, que é o amarelo, ocorre um sistema de rodízio e os usuários começam a captar menos água do que a vazão total. “Em uma situação crítica, que é o nível vermelho, todos os usuários são obrigados a suspender suas capacidades, até que o rio se recomponha de alguma forma”, explica Vergara.
Conforme o gerente de Controle e Uso dos Recursos Hídricos do Estado, Mateus Chagas, com o GAN, houve avanços claros na capacidade de controle e acompanhamento do uso da água, com a instalação de estações telemétricas em pontos estratégicos, especialmente nas elevatórias Canaã, Ilha Verde, Terra Negra e Dois Rios. “Isso permitiu que o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) e o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Formoso passassem a atuar de forma coordenada, ajustando o uso da água conforme os dados de disponibilidade real”.
Além disso, este ano, houve outro avanço importante: “o cruzamento inédito entre o volume outorgado (autorizado legalmente) e o volume efetivamente captado, com a publicação de relatórios semanais detalhados, dando transparência ao uso dos recursos hídricos e permitindo respostas mais ágeis a irregularidades”, conta. “Também foi ampliada a presença de fiscais na bacia, com ações diárias de campo para coibir captações fora dos horários definidos no plano de revezamento ou realizadas sem autorização”, acrescenta o gerente.
O semáforo da sobrevivência
A inteligência do GAN vai além dos números. Um sistema de cores indica, em tempo real, a situação hídrica da bacia:
Conforme o juiz Wellington Magalhães, o sistema semafórico veio para criar regras de operação quando o nível dos rios baixa, em razão da seca, e também das captações que crescem exponencialmente, especialmente no período de junho a setembro. ”O sistema semafórico vem trazer uma linha de atenção a partir da qual todos os produtores passam a captar água em regime de rodízio”, explica.
O magistrado ressalta a linha vermelha, a partir da qual nenhuma captação de água pode ocorrer na bacia do Rio Formoso.
“Antes, a gente captava, mas não sabia se estava agredindo o meio ambiente. Com esses dados, a gente sabe o que está captando, o volume de água no rio e qual a vazão. Isso nos favorece a tomar algumas atitudes mais eficientes para o manejo”, relata o produtor Josney Rosa.
O diretor do Distrito de Irrigação do Rio Formoso (DIRF), maior do estado, Euvaldo Pinheiro, diz que o DIRF apoiou o projeto de gestão desde o início, por meio do monitoramento das captações, e contribuiu financeiramente para criação do Sistema GAN, sendo o primeiro a instalar e transmitir os dados.
“O processo de adaptação foi e está sendo desafiador, pois, à medida que as ações são implementadas, constata-se a necessidade de novas medidas a serem implementadas, e o DIRF continua na vanguarda dessas medidas, inclusive propondo o uso da outorga coletiva para o seu trecho de abrangência”, comenta.
Varlei Alves Ribeiro, da Associação dos Produtores Rurais do Rio Formoso da Lagoa da Confusão, lembra que, a partir do processo judicial na bacia, a entidade construiu quatro barragens elevatórios no Rio Formoso (Elevatórios Dois Rios, Terra Negra, Ilha Verde e Canaã), que colocou disponibilidade hídrica na bacia do Rio Formoso, impactando na revisão das outorgas de recursos hídricos da região. “Também construiu e instalou estações telemétricas e medidores de vazão em bombas.”

O presidente da Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins (Aproest), criada em 2017 para representar os interesses dos produtores e liderar o desenvolvimento do polo de agricultura Irrigada, Wagno Milhomem, destaca que os debates e audiências públicas foram fundamentais para união dos produtores em defesa da produção sustentável e o desenvolvimento da região. “Hoje, temos quase 30 barragens construídas pelos produtores e mais 14 que estão sendo feitas”, diz. Milhomem enfatiza que essas estruturas estão garantindo a perenização dos rios.
Sentença com raízes: o marco de 2023
Em março de 2023, após anos de escuta e construção conjunta, o juiz Wellington Magalhães proferiu a Sentença Estrutural da Bacia do Rio Formoso. O documento lista 27 medidas judiciais elencadas de forma democrática em que todas as partes tiveram a oportunidade de participar.
“As audiências públicas foram de extrema relevância, primeiro porque possibilitou um amplo debate sobre a exploração dos recursos hídricos em que todos tiveram a oportunidade de contribuir com a construção coletiva de uma solução; segundo porque permitiu também que pudéssemos conhecer e diagnosticar as principais causas da crise hídrica daquele ano, ou seja, a ausência de dados e informações da disponibilidade hídrica e da demanda hídrica”, destaca o magistrado.
A sentença estrutural da Bacia do Rio Formoso, conforme explica o juiz, não é uma sentença genuinamente judicial.
“Ela foi construída por todos os envolvidos e tem como finalidade traçar um itinerário a partir dessas 27 medidas que garantirão para as gerações futuras a sobrevivência, a sustentabilidade de todos os rios da bacia do Rio Formoso”, acrescenta Magalhães.
Até a publicação da sentença estrutural, foram realizadas 15 audiências públicas. “Tivemos a oportunidade também de acompanhar a evolução das ações necessárias ao cumprimento dos acordos firmados em prol de uma gestão de alto nível.
Atualmente, a sentença encontra-se em fase de cumprimento, com desafios a serem enfrentados tanto pelo Poder Judiciário, que media o conflito, quanto para todos os envolvidos.
“Assim, a gente avança passo a passo no projeto Gestão de Alto Nível”, ressaltou. Segundo o magistrado, o processo de reconstrução da Bacia do Rio Formoso mostra que a intervenção judicial, por meio desse processo estruturante, foi fundamental para garantir ao setor produtivo a segurança jurídica necessária para produzir, assim como garantir a sustentabilidade e a sobrevivência dos rios.
Com isso, as águas voltam a correr, e com elas, corre também a certeza de que a água pode ser abundante, desde que seja justa.
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