Judiciário tocantinense vai até as aldeias Krahô levar informação e cidadania em busca de resolução pacífica de conflitos
Endividada, sem acesso aos cartões de seus benefícios e enfrentando dificuldades para se alimentar. Essa é a realidade da grande maioria dos cerca de 3,1 mil indígenas krahô que vivem nos municípios de Itacajá e Goiatins, na região Norte do Tocantins, e que tem gerado conflitos entre povos nativos e comerciantes locais.
A situação chegou até as portas do Judiciário por meio dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) das comarcas de Itacajá e de Guaraí. Diante dos casos relatados por indígenas e representantes de entidades, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), agravados por estarem inseridos em um contexto social de miséria e vulnerabilidade, o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO), por intermédio do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) e Cejusc de Guaraí, percebeu a necessidade de trabalhar com as comunidades no sentido de resguardar a cidadania indígena para a promoção da cultura da paz.
Para tanto, o Poder Judiciário tocantinense deu início ao Projeto Círculos Restaurativos para Prevenção de Conflitos Envolvendo Povos Indígenas das Comarcas de Itacajá e Goiatins. A iniciativa visa percorrer 41 aldeias Khahô com o objetivo de levar diversas ações de cidadania, atendendo ao princípio da dignidade humana.
Além de informações sobre o acesso à justiça pré-processual, por meio do Cejusc, o projeto leva ainda aos indígenas conhecimento sobre direitos, bem como ensinamentos acerca de educação financeira, agricultura familiar indígena, assim como os círculos de diálogos de construção da paz, que representam uma das metodologias da Justiça Restaurativa.
A equipe de reportagem do Centro de Comunicação Social do TJTO acompanhou o início dos trabalhos, realizados no período de 19 a 21 de junho, nas aldeias Santa Cruz, Barra e Água Fria, todas no município de Itacajá.
Nesta matéria, podem ser conferidas histórias de indígenas que passam pela situação de ordem econômica, por não terem conhecimento de como lidar com o dinheiro, e de conflitos, por cederem seus cartões a comerciantes como garantia de crédito.
A matéria também traz os detalhes das ações que o Poder Judiciário, sob a coordenação da juíza Luciana Costa Aglantzakis e com o apoio da Prefeitura de Itacajá, está desenvolvendo nas aldeias, visando estimular o protagonismo dos povos Krahô e reduzir o superendividamente da população indígena.
Confira a seguir.
“O cartão ficou com o patrão”
Os R$ 600,00 que Antônia Krahô recebe todo mês de benefício do Bolsa Família nem passa pelas mãos dela e do marido, Domingo Krahô, moradores da Aldeia Água Fria, localizada a 22 km de Itacajá. O dinheiro já fica no comércio.
“O cartão ficou com o patrão”, conta Domingos. Patrão é como os indígenas chamam os comerciantes. Segundo relata o krahô, para conseguir crédito no comércio, ele precisou deixar o cartão e a senha do benefício da esposa como garantia.
A cada 15 dias, ele vai até a cidade comprar alimentos e diz que, quando o benefício sai, o próprio comerciante, que já está de posse do cartão, saca o dinheiro para ir abatendo na dívida, prática que se tornou comum nas relações entre comerciantes e indígenas na região.
Com a esposa ainda se recuperando de uma cesariana, um bebê de pouco mais de 20 dias e dois filhos (de 6 e 11 anos) para alimentar, Domingos comenta que também planta arroz e mandioca numa pequena roça que cultiva nas terras da aldeia onde vive. Com o dinheiro do Bolsa Família, diz que consegue comprar poucos produtos, a exemplo de arroz, macarrão, farinha de milho e o leite para o filho recém-nascido, que custa acima de R$ 50,00 a lata, pois a esposa ainda não consegue amamentar. Carne na casa da família Krahô é uma raridade
Transporte
Sem transporte para se deslocar até a cidade para comprar comida, Domingos diz que ainda precisa arcar com o valor do frete, que de carro custa R$ 400,00 para ir à cidade e voltar para a aldeia. Se o transporte for feito de moto, o valor é de R$ 130,00.
Contudo, o indígena ainda acumula uma dívida de pouco mais de R$ 1 mil no comércio, conforme relata, e reclama do tratamento recebido. “Mehin (indígena) tem que chorar para comer”, destaca, citando que sofre preconceito e humilhações na cidade.
Após ouvir da equipe do projeto do Judiciário sobre os direitos que tem e conhecer um pouco sobre educação financeira, o indígena concorda que não conseguirá quitar sua dívida e organizar suas economias se continuar agindo da mesma forma. Diante disso, diz que pretende conseguir o cartão de volta para que ele mesmo possa fazer suas compras e pagar pela mercadoria com o dinheiro que recebe.
“Quando falta comida, a gente vai lá e busca”
Rosilda Krahô, da Aldeia Barra, mora com dois sobrinhos pequenos e a mãe, dona Antônia Krahô, uma senhora de 104 anos, de que cuida. Tanto a mãe quanto ela estão devendo e com os cartões de seus benefícios previdenciários retidos em um estabelecimento comercial na cidade. Há muitos anos, segundo Rosilda, não tem acesso ao dinheiro que recebem e nem sabe direito quanto cai na conta das duas, porque todo dinheiro que é liberado já fica com o comerciante para quitar a dívida. “Quando falta comida, a gente vai lá e busca”, conta.
Com isso, acaba faltando dinheiro para comprar remédio e outros produtos que ela e a mãe precisam, porque, de acordo com Rosilda, o “patrão” não entrega dinheiro, somente mercadoria.
Se não bastasse a dívida no comércio, ainda é descontado do benefício de Rosilda R$ 300,00 todos os meses por conta de um consignado que ela fez para construção de sua casa, que acabou não saindo da estrutura. Numa área bem próxima da casa da mãe, onde mora, estão fincadas no chão as estacas do que seria a sua futura moradia. Ela antecipou uma quantia para uma pessoa fazer a obra e acabou ficando sem a casa e sem o dinheiro.
Apesar de reconhecer que entregou seu cartão por sua vontade, diz que gostaria de voltar a ter autonomia para pegar suas compras.
“Não dá pra comprar quase nada”
“Ele (comerciante) só me vende R$ 100,00, e com R$ 100,00 não dá pra comprar nada”, queixa-se Cleonice Krahô, moradora da aldeia Santa Cruz. Assim como Rosilda, ela também está com dívida no comércio e cuida da mãe, uma senhora de 85 anos com diabetes, e está com seu cartão do benefício que recebe do Bolsa Família retido.
Mas foi por causa do benefício previdenciário da mãe, cujo cartão foi deixado com um comerciante pelo irmão, que Cleonice procurou a Justiça para tentar reaver o objeto. “Ele não entrega”, afirma a indígena.
Em frente à moradia de apenas um cômodo, sem paredes e coberta de palha, onde vive com outras seis pessoas, entre marido e filhos, Cleonice Krahô lembra das dificuldades enfrentadas. Segundo ela, não consegue comprar muita mercadoria para alimentação da família no comércio por conta da dívida que contraiu.
Apesar de não informar ao certo o valor da dívida, ela diz que é alto, mas desconfia que o total que está sendo cobrado não equivale ao valor real. A indígena também cita que os produtos vendidos a prazo possuem valor muito acima do real. Com isso, entende que nunca terá condição de pagar a dívida, pois precisa se alimentar e a conta só vai aumentando.
Por causa dessa situação, Cleonice relata que tem dias que falta alimento em sua casa. Ela também relata humilhações sofridas e espera que por meio da atuação da Justiça consiga resolver o conflito.
Caminhos da Justiça Restaurativa
Sem manutenção, a estrada de chão que leva até a Aldeia Santa Cruz, primeira a ser visitada pela equipe do projeto, tornou o percurso, de cerca de 30 km, mais longo. Para realizar todas as atividades previstas, a caravana do Judiciário precisou pegar a estrada cedo, saindo do centro de Itacajá até a reserva Krahô.
Nas terras da Aldeia Santa Cruz, que conta com aproximadamente 180 indígenas, foram iniciadas as ações do projeto no dia 19 de junho, uma segunda-feira. Um grande grupo de moradores aguardava ansioso pela chegada da caravana para uma agenda repleta de atividades previstas para o dia.
Numa estrutura montada pelo Poder Judiciário, a juíza Luciana Costa Aglantzakis, que responde pela Comarca de Itacajá, e os seis facilitadores do projeto (Carla Regina Nunes dos Santos, Sergio Leal Mota, Amanda Costa Silva, Magna Moreira Feitosa, Pedro da Silva Araújo e Juliany Abreu) deram início às ações, explicando os objetivos do trabalho, a metodologia que seria utilizada e a importância da iniciativa, realizada principalmente em forma de roda de conversa, onde foram trabalhados os temas direitos indígenas, agricultura de subsistência indígena e educação financeira, bem como o Círculo Restaurativo de Construção de Paz.
Direitos indígenas
De forma simples e prática, na abordagem sobre direitos indígenas, os facilitadores vinculados ao Tribunal de Justiça levam informações sobre a Constituição Federal e demais leis que asseguram os direitos dos indígenas. Na oportunidade, também foi falado sobre os órgãos onde os povos tradicionais podem procurar para denunciar violação de seus direitos e resolver conflitos, a exemplo dos Cejuscs.
Educação financeira
Para explicar a relação com o dinheiro aos povos Krahô, a juíza Luciana Aglantzakis abordou questões acerca de como funciona o sistema financeiro, a moeda brasileira e o cartão, o que fazer com os benefícios recebidos, empréstimo e os riscos de entregar documentos pessoais a terceiros.
A ideia, segundo a magistrada gestora do projeto, é que os indígenas tenham empoderamento e entendam o poder que têm para tomar decisões e gerenciar seus recursos a fim de saírem dessa situação. “A educação financeira pode levar a uma maior autonomia econômica e o fortalecimento das comunidades indígenas”.
Agricultura familiar indígena
Numa outra frente, o Judiciário também busca despertar nos povos Krahô o interesse pela agricultura para que voltem a plantar para garantir a sobrevivência e a continuidade de suas culturas, pois a introdução de alimentos industrializados no cardápio indígena está contribuindo para o aumento de doenças, como o diabetes, entre os nativos. Para tanto, estão sendo levadas informações sobre como a agricultura indígena pode ser desenvolvida de forma eficaz, tanto para garantir a segurança nutricional nas aldeias quanto para promover a geração de renda.
Em sua palestra com o tema: “Agricultura Familiar Indígena, Programas de Governo e Agroecologia”, o engenheiro agrônomo Júlio Cezar de Lucena Araújo, que também é vereador de Itacajá, falou sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), conhecido também como compra direta; e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que podem comprar a produção dos indígenas. Oportunidade em que explicou como os indígenas devem fazer para se beneficiarem desses programas do governo federal.
Construção da paz
Conduzido pelos seis facilitadores do projeto, o Círculo de Diálogo de Construção de Paz encerra a programação do projeto nas aldeias, promovendo uma ação educativa como instrumento para a prevenção de conflitos, por meio da conscientização, valorização dos costumes e modo de vida dos envolvidos.
Por meio do círculo, o projeto busca incentivar aprendizados diversos, além da boa convivência entre indígenas, comunidade em geral e a promoção da cultura da paz.
Durante os círculos restaurativos, os facilitadores estão tendo a oportunidade de identificar os indígenas que estão com demandas pessoais de superendividamento, entre outras questões, ouvi-los e colher deles sugestões para solução dos conflitos.
Projeto busca prevenir conflitos, estimular o protagonismo e reduzir o superendividamento dos povos Krahô
Prevenção de conflitos por meio do diálogo, fortalecimento da política de tratamento de desavenças, estimular o protagonismo dos povos Krahô e redução do superendividamento da população indígena são os resultados esperados pelo Poder Judiciário tocantinense com as ações do Projeto Círculos Restaurativos para Prevenção de Conflitos Envolvendo Povos Indígenas das Comarcas de Itacajá e Goiatins.
Foi diante da situação de ordem econômica envolvendo os povos Krahô que surgiu a ideia do projeto. De acordo com a juíza Luciana Aglantzakis, no primeiro momento, como havia uma questão que poderia envolver processos criminais, foi feita a sugestão para os indígenas conversassem com os comerciantes no Cejusc pré-processual em busca de solução para os conflitos.
“A ideia da técnica da Justiça Restaurativa veio a partir de um curso que eu fiz pela Esmat (Escola Superior da Magistratura Tocantinense), no qual um facilitador disse que esse conflito se adequava a esse método.”
Nos primeiros encontros entre indígenas e comerciantes foi aplicado o método da Justiça Restaurativa e, conforme a magistrada, agora o círculo está sendo levado a todas as aldeias. “O objetivo é ouvi-los, saber como está essa situação e trabalhar a questão da cidadania e do empoderamento deles”, destaca.
Cartilha bilíngue
“O Cejusc de Guaraí foi importantíssimo para o início do projeto. Estamos na fase de visitação às aldeias”, frisa a juíza, antecipando que a intenção é que seja confeccionada uma cartilha bilingue sobre superendividamento para ser distribuída nas aldeias e, se possível, a criação de um link por QR code para que o Cejusc pré-processual se torne um canal facilitador para os indígenas e também para todos os jurisdicionados da comunidade em geral.
Além do acesso aos ciclos de Justiça Restaurativa, a magistrada ressalta que os indígenas estão tendo voz e relatando os problemas que estão acontecendo nas comunidades. “São problemas pontuais, como a falta de transporte”, cita. Também há algumas situações, como o problema da falta de unidade de saúde e de água na Aldeia Barra, razão pela qual os cerca de 120 moradores estão tendo que usar água de um córrego para beber e suprir outras necessidades.
Todos os problemas apresentados vão constar em um relatório que está sendo elaborado com base nas visitas feitas às aldeias. Segundo a juíza, a ideia é que o Judiciário encaminhe essas demandas para os órgãos competentes na busca por solução.
Cidadania
Uma das facilitadoras indicadas para o projeto, a técnica judiciária Carla Regina Nunes dos Santos explica que o Cejusc de Guaraí, onde atua, é hoje o polo responsável pelo setor de cidadania da regional, que engloba o município de Itacajá.
Nesse contexto, Carla conta que, quando o Cejusc de Itacajá procurou o Nupemec e foi solicitada a realização dos círculos restaurativos no município, ela foi uma das facilitadoras indicadas para trabalhar nessa ação.
“Foram realizados dois círculos pontuais com indígenas insatisfeitos com essa problemática de retenção dos cartões. Nós conseguimos acordos e levamos a problemática de forma macro para a gestão”, diz, acrescentando que a partir daí houve aprovação por parte do Nupemec e da Presidência do Tribunal de Justiça para a realização do projeto, que também conta com a parceria do Município de Itacajá. “A ideia é que o trabalho seja realizado nas 41 aldeias da região.”
O projeto do qual Carla faz parte está vinculado ao tema de sua pesquisa no Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos, promovido pela Esmat, em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (Esmat/UFT), com o tema “Direitos Indígenas e Acesso à Justiça: Uma Análise da Atuação do Poder Judiciário do Estado do Tocantins no Combate à Hipervulnerabilidade dos Krahô frente ao Sistema Econômico de Itacajá”.
O que é um Círculo de Diálogo de Construção da Paz?
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O círculo é um processo de diálogo que trabalha intencionalmente na criação de um espaço seguro para discutir problemas muito difíceis ou dolorosos, a fim de melhorar os relacionamentos e resolver diferenças. A intenção do círculo é encontrar soluções que sirvam para cada membro participante. O processo está baseado na suposição de que cada participante do círculo tem igual valor e dignidade, por isso é dado voz igual a todos os participantes. Cada participante tem dons a oferecer na busca para encontrar uma boa solução para o problema.
O processo de círculo é pré-concebido para discutir como a conversa acontecerá antes de discutir os assuntos difíceis. Consequentemente, o círculo trabalha os valores e diretrizes antes de falar sobre as diferenças ou conflitos. Quando é possível, o círculo também trabalha a construção de relacionamentos antes de discutir os assuntos difíceis.
A responsabilidade do facilitador é ajudar os participantes a criar um espaço seguro para a sua conversa e monitorar a qualidade do espaço durante o tempo que o círculo estiver acontecendo.
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Fonte: Guia do Facilitador do TJRS
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